Um choque de culturas na Copa: a Fifa aprende o ‘jeitinho’
De um lado, o rigor e a organização dos europeus; do outro, o improviso e os atrasos dos brasileiros. Por enquanto, o arcaico ganhou. Pior para todos nós
“Teremos de viver juntos por um certo período. Não podemos nos divorciar. É claro que somos diferentes. Precisamos, então, nos organizar de forma que isso funcione. É até bom para a Fifa aprender a conviver com o jeitinho brasileiro”, disse Jérôme Valcke, cansado de resistir aos hábitos locais
Setenta meses se passaram desde o anúncio do Brasil como palco da Copa de 2014. Agora, falta apenas um para o início da Copa das Confederações, o ensaio geral para o Mundial do ano que vem. Apesar das condições ainda distantes do ideal, tudo indica que o torneio acontecerá sem nenhum grande sobressalto. O caminho até aqui, no entanto, foi sinuoso e cheio de percalços – e esse percurso foi marcado por uma relação turbulenta e descompassada entre o país anfitrião e a instituição que organiza a Copa. Quando o Brasil recebeu o torneio pela primeira vez, há mais de seis décadas, o futebol ainda era semiamador, e a Fifa, uma entidade de poderes limitados e orçamento modestíssimo. Hoje, porém, a federação presidida por Joseph Blatter é um colosso que estende sua influência por todos os continentes, tem mais filiados que a ONU e administra um patrimônio multibilionário. Ainda que desperte certa antipatia – em parte pelos casos de corrupção envolvendo velhos cartolas, em parte pela imagem de autoritarismo e arrogância transmitida por algumas de suas principais figuras -, trata-se de um empreendimento notável, capaz de fazer um simples jogo transformar-se numa poderosa indústria, de moldar uma paixão popular num denominador comum entre os mais diferentes povos. Por mais que tenha defeitos (e eles não são poucos), a Fifa é uma organização sólida, eficaz e hábil. Para desgosto do brasileiro, o mesmo não pode ser dito da nossa máquina estatal ou da administração esportiva no país, ainda apegadas aos vícios do passado e ainda relutantes em correr rumo ao futuro – o que transformou a parceria entre os donos da festa quadrienal da bola e os anfitriões da próxima edição do evento num conflito entre diferentes visões de mundo. É de se lamentar que, por enquanto, a forma mais arcaica de se fazer as coisas esteja vencendo, como mostram os lamaçais que cercam as novas e caríssimas arenas e as obras de infraestrutura fora do prazo ou do orçamento.
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Com apenas cinco semanas até o pontapé inicial da Copa das Confederações, dois dos quatro estádios do torneio ainda não foram inaugurados (Arena Pernambuco e Estádio Nacional de Brasília). Os demais, principalmente o Maracanã, ainda têm muitas falhas a corrigir. O atraso é de quase seis meses – o prazo inicial para a conclusão dos trabalhos era dezembro de 2012. Depois de aceitar três adiamentos, a Fifa teve de se contentar em caminhar no fio da navalha, sem margem para erros num evento que reunirá mais de meio milhão de torcedores. Ainda assim, o governo não demonstra qualquer preocupação com a quebra de compromisso. Seu principal interlocutor com a Fifa chegou a fazer uma ode ao jeitinho para sustentar que não havia nada de errado em rasgar os prazos. “O brasileiro tem um jeito próprio de organizar, mas sempre entrega o que precisa”, disse o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, no ano passado, numa célebre entrevista em que também defendeu o costume da falta de pontualidade no país. “A gente atrasa até para sair de casa para o cinema ou restaurante. É correndo que o menino vai para a aula, certo? Então, isso é uma coisa da nossa cultura. Mas tudo funciona.” Nem tudo. Nas últimas semanas, os eventos-teste realizados nos estádios que já foram entregues revelaram limitações gritantes, quase sempre no entorno das arenas. Era justamente por isso que a Fifa havia estabelecido um cronograma tão rigoroso. Com tempo suficiente para finalizar corretamente e testar adequadamente todos os locais de competição, se oferece ao torcedor mais segurança, conforto e praticidade. Nada mais simples e eficaz que isso – e um reflexo do altíssimo grau de profissionalização atingido pela Fifa nas últimas décadas. Há pelo menos trinta anos, as Copas do Mundo funcionam quase como um relógio – suíço, é claro. A precisão na organização, resultado da experiência acumulada em tantas edições de sucesso, transforma o evento numa ilha de excelência mesmo diante das mais adversas condições – como se viu na África do Sul em 2010 e como provavelmente se verá no Brasil no ano que vem, apesar de tudo.
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Paralisia e frustração – Localizado numa região nobre de Zurique, uma das cidades mais caras do planeta, o quartel-general da Fifa, vizinho do Zoológico local e instalado no alto de uma colina, parece uma mistura de bunker e sede de banco. Construído a um custo de 184 milhões de dólares, o prédio de desenho arrojado e interior futurista – com elevadores de vidro, acabamento de xisto brasileiro e nogueira americana e portas que se abrem com a leitura da digital do funcionário -, abriga mais de 300 pessoas. Entre elas estão profissionais pinçados do mercado financeiro e de grandes empresas de vários países europeus, em especial França, Alemanha, Itália e a própria Suíça. A reportagem do site de VEJA visitou o local no ano passado. Em todos os departamentos, a impressão é de que ali funciona uma multinacional próspera e poderosa, com executivos capacitados e um modelo de negócio incrivelmente rentável. Só com a venda dos direitos de transmissão da última Copa, a Fifa faturou mais de 2 bilhões de dólares. Replicar o formato de sucesso aperfeiçoado ao longo das dezenove edições do torneio transformou-se numa obsessão para a entidade – daí o surgimento do famigerado “padrão Fifa”, descrito em enormes cadernos de normas técnicas para garantir que todas as especificações sejam seguidas à risca. Para muitos brasileiros, esse rigor virou motivo de escárnio – quem é a Fifa, afinal, para dizer como o país do futebol tem de promover uma partida? Já para as autoridades, as cobranças ao cumprimento das normas e prazos soou como intromissão indevida – ou até, para os mais patriotas, como atentado à soberania nacional. Mas como bem definiu o cartola argentino Julio Grondona, raposa velha dos bastidores do futebol, “a Copa é da Fifa; o Brasil é só onde ela acontece”. Uma injustiça, talvez, principalmente diante do fato de que o evento deve muito de seu fascínio e popularidade à seleção brasileira. Do ponto de vista institucional, no entanto, não há dúvidas: a bola está nas mãos da entidade, que faz o jogo onde e como decidir.
Foi dentro desse contexto que acabou surgindo a frase lapidar do choque de culturas entre o rigor dos cartolas europeus e o improviso dos brasileiros envolvidos nos preparativos para 2014. Ao dizer que o Brasil merecia um “chute no traseiro”, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, resumiu a frustração acumulada em anos de paralisia nos trabalhos necessários para realizar uma Copa irretocável. O francês Valcke, 52 anos, ex-executivo do Canal+ e ex-diretor da agência de marketing esportivo Sportfive, chegou a ser alvo de um ultimato do governo brasileiro a Blatter, que ouviu que o país-sede exigia outro interlocutor para tratar dos assuntos da Copa. Nada feito: Blatter avisou que só Valcke lidaria com os brasileiros. O ministro Aldo, um dos críticos mais furiosos da alfinetada do francês, teve de recuar. Valcke foi pego de surpresa por outro traço típico do brasileiro ao ser visitado por Aldo numa reunião marcada para aparar as arestas da relação, há exatamente um ano, no QG de Zurique. Apreensivo com o reencontro com o ministro, o secretário-geral da Fifa ganhou um abraço caloroso do visitante, que cumpriu bem o papel do “homem cordial” diante da frieza europeia. Os encontros e reuniões se intensificaram, assim como as visitas do francês ao Brasil, onde Valcke foi incumbido da missão de fiscalizar os avanços nas obras dos estádios e advertir os retardatários. O pragmatismo de ambos os lados fez com que a cooperação melhorasse muito – o que não impediu, no entanto, que os visitantes amargassem intermináveis momentos de constrangimento nos diversos eventos conjuntos da Fifa, do Comitê Organizador Local (COL) e do governo no país. Diante dos exoticismos locais, Valcke e outros dirigentes do alto escalão da Fifa (como o suíço-italiano Walter De Gregorio, diretor de comunicações e assuntos públicos, e o francês Thierry Weil, que dirige o departamento de marketing) mostraram muita disciplina, há de se reconhecer.
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Sem divórcio – Não era mais novidade, por exemplo, quando Aldo Rebelo, cuja carreira parlamentar foi marcada pelo projeto de lei que combatia os estrangeirismos na língua portuguesa, desviava as atenções de algum anúncio importante, em entrevistas coletivas com jornalistas do mundo todo, para colocar em discussão a necessidade de garantir a presença dos índios nos estádios (ou, pior ainda, para falar da situação do Palmeiras, seu clube do coração). No fim do ano, na bateria de eventos ligados ao sorteio dos grupos da Copa das Confederações, em São Paulo, Valcke fez um agrado no ministro: cedeu 50.000 entradas gratuitas para a Copa, que serão distribuídos a beneficiários do Bolsa Família, e claro, aos índios tão lembrados por Aldo. O francês e o brasileiro posaram para fotos segurando um ingresso simbólico feito de papelão. Aldo sorriu e abraçou o representante da Fifa. “Agradeço muito por essa surpresa, foi um belo gesto.” No quesito da discurseira fora de hora, porém, ninguém superou o presidente da CBF e do COL, José Maria Marin, um campeão em intervenções inadequadas nos eventos da Fifa. O cartolão, que parecia pouco preparado para participar dos encontros, ainda tinha a barreira do idioma (não fala inglês ou francês) na hora das conversas privadas com os dirigentes estrangeiros. Quando ficavam diante dos microfones, Marin se distraía com assuntos secundários enquanto Valcke fazia força para não deixar transparecer sua frustração. As coisas melhoraram para ele com o crescimento da figura de Ronaldo nos eventos da Copa no Brasil. O francês convive bem com o ex-craque e não esconde essa preferência na hora de visitar estádios, posar para fotos com operários e fazer uma brincadeira que já virou costume: improvisar uma disputa de pênaltis nos campos ainda inacabados das arenas do Mundial. “Achamos um jeito de trabalhar juntos, e isso é o mais importante”, disse Valcke no ano passado, já aclimatado ao modo brasileiro de trabalhar. “Teremos de viver juntos por um certo período. Não podemos nos divorciar. É claro que somos diferentes. Precisamos, então, nos organizar de forma que isso funcione. É até bom para a Fifa aprender a conviver com o jeitinho brasileiro”, afirmou o francês, num raro momento de bom humor – e num sinal claro de que se cansou de resistir aos hábitos locais.