Segurança nos carros: o Brasil ainda está na rabeira
Mesmo com airbags e freios ABS obrigatórios nos automóveis novos a partir de 2014, o Brasil continua atrasado em comparação com a Europa e os EUA, onde já se discute o uso de conexão wireless e sistemas autônomos nos veículos
Desde agosto de 2012, 3.000 motoristas da pequena cidade de Ann Arbor, no estado de Michigan, Estados Unidos, testam uma das mais promissoras tecnologias de segurança para o carro do futuro, aquele que promete não matar seus ocupantes e pedestres em acidentes. Chamada de Safety Pilot, a tecnologia utiliza conexão sem fio para a comunicação entre veículos em tempo real. Os condutores equipados com o sistema são alertados sobre a possibilidade de acidentes com outros carros e sobre eventuais problemas na estrutura do próprio veículo, a fim de evitar colisões e melhorar o fluxo de tráfego. O estudo, que está sendo realizado pelo Instituto de Investigação de Transporte da Universidade de Michigan e o Departamento de Transporte do governo americano, durará um ano e pode ser decisivo na criação de novas leis.
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“Olhando para o próximo estágio da segurança rodoviária americana, veículos conectados são a grande promessa para salvar vidas. As informações coletadas nesse e outros projetos-chave serão usadas pelo Departamento de Transportes para determinar avanços em 2013, incluindo a proposição de legislação que obriguem a instalação no país”, conta Troy Green porta-voz do governo para o projeto. A esperança é que essa tecnologia esteja aliada a outras que já estão disponíveis nos carros americanos, como aviso sobre saída de trajetória, detecção de pontos cegos, advertência de colisões frontais e faróis adaptáveis. Segundo uma estimativa do Instituto de Seguros dos Estados Unidos para Segurança nas Estradas (IIHS), esses equipamentos têm o potencial de prevenir ou mitigar uma em cada três colisões fatais e uma em cada cinco colisões que resultam em ferimentos graves ou moderados. Mais segurança que também se refletiria na economia. De acordo com o Centro de Controle para Doenças e Prevenção, o país sofre uma perda anual de 99 bilhões de dólares em contas hospitalares e queda de produtividade por causa de acidentes de carro.
A demanda por veículos mais seguros coloca esses países na ponta do desenvolvimento na área. Nos EUA, o Programa Eletrônico de Estabilidade (ESP) – sistema computadorizado que detecta perda de tração nas rodas e falta de controle do volante, acionando automaticamente os freios dianteiros e traseiros com forças específicas para aumentar a estabilidade – está presente em 90% dos veículos novos e tem sua instalação na linha de produção mandatória desde 2008 por norma da Administração Nacional de Segurança de Tráfego Rodoviário (NHTSA). E não é por menos, de acordo com uma pesquisa do Instituto de Seguros, o equipamento previne 33% de acidentes fatais e reduz em 73% acidentes em que o carro pode capotar. No continente europeu, onde essas capotagens correspondem a 40% dos acidentes fatais anuais, a tecnologia pode salvar até 4.000 vidas e evitar 100.000 acidentes com feridos. Um estudo sueco usado pela Comissão Europeia de Segurança na Estrada aponta que carros equipados com o item têm uma chance 22% menor de se envolver em um acidente. Essa probabilidade se torna ainda menor em pistas molhadas (32%) e com neve (38%). Por esse motivo, a UE aprovou este ano a instalação nos veículos a partir de 2014.
E a legislação europeia de segurança para automóveis vai mais longe e prevê para 2015 a obrigatoriedade de instalação de sistemas de frenagem autônoma – presente em 21% dos veículos – e aviso de saída de mão. Podendo funcionar por radar, laser ou vídeo para acompanhar o movimento de outros carros, esses instrumentos tomam conta do veículo em uma situação de risco com uma resposta muito mais rápida que o reflexo humano. A Comissão Europeia estima que cerca de 8.000 vidas possam ser salvas por essas tecnologias, economizando 6,12 bilhões de euros por ano. O mesmo estudo mostra que, em comparação, os carros equipados com os sistemas têm 27% menos chances de se acidentarem. Colisões em que o condutor sai da pista ou entra na contramão correspondem a 17% do total nos EUA, de acordo com a NHTSA. Desde 2009, o país estuda adotar o aviso de saída de mão, baseado em dados como esse.
Já no Brasil, com uma média de 40.000 óbitos por ano de acordo com o Mapa da Violência, a história é diferente e a segurança automotiva começa a caminhar lentamente por iniciativa do governo e, em parte, por conscientização dos consumidores. Novas resoluções do Código Nacional de Trânsito (311 e 312 da Lei 11.910), aprovadas em 2009, tornam obrigatórios até 2014 airbags duplos frontais e freios ABS de série em todos os carros novos. A exigência dos airbags, já estava prevista na redação original do Código Nacional de Trânsito em 1997, porém foi vetada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, pois a imposição em toda a frota, inclusive nos carros mais velhos, poderia criar dificuldades técnicas para os motoristas e a fiscalização. Por esse motivo, as novas resoluções do Contran estipulam metas gradativas para as montadoras nacionais se adaptarem. Em 2012, 30% dos carros fabricados devem possuir ambos os itens. No começo de 2013, esse número deve dobrar para chegar à totalidade no ano da Copa do Mundo.
Mas a verdade é que estamos décadas atrasados se compararmos a evolução da segurança automotiva brasileira com a dos países de ponta. Além disso, não temos projetos contundentes no que se refere ao ESP e itens como o Monitoramento de Pressão dos Pneus, sistema que avisa da necessidade de calibragem, ajudando a evitar 40.000 acidentes e a economizar, no mínimo, 2 bilhões de galões em gasolina por ano nos EUA. Desde 1989, o airbag é obrigatório por lá e é vendido desde a década de 1970. Na Europa, está em quase 100% dos carros, apesar de não ser imposto pelo governo. Dados da NHTSA estimam que, entre 1975 e 2010, 32.538 pessoas foram salvas pelo uso de airbags frontais. Estimativas do órgão apontam que o uso do airbag combinado com o cinto de segurança reduz em 61% o risco de morte. Os americanos, inclusive, já contam desde 2008 com sistemas de airbag laterais e de cortina, equipamentos que protegem o torso e a cabeça e, segundo estudo do Instituto de Seguros, reduzem em 45% as fatalidades em colisões laterais e em 74% o risco de ferimentos graves em batidas com outro carro.
Essencial ou luxo? – Os ABS, sigla para “anti-lock braking system” (sistema antitravamento de frenagem, na tradução), são ainda mais antigos. O primeiro protótipo do ABS foi desenvolvido para a frenagem de aviões na Europa, em 1929. A partir da década de 1970, o sistema passou a ser incorporado em carros de diversas montadoras. Em 1985, tornaram-se populares os freios ABS eletrônicos desenvolvidos pela alemã Bosch, quando a Ford os incluiu em toda linha de produção americana e europeia.
Na prática, esses freios impedem que a roda do carro trave e entre em derrapagem, ou seja, perdendo aderência com a pista no momento da frenagem, o que aumenta o controle do veículo em uma situação que exige paradas bruscas. Um estudo do Departamento de Transportes dos EUA recomenda a instalação, mostrando que, em média, a diferença do espaço de frenagem de carros com ABS é 22% maior. Desde 2007, todos os carros novos vendidos na União Europeia são obrigados a possuir a tecnologia. E, embora não seja mandatório nos EUA, 90% da frota está equipada com o sistema, aponta o Instituto de Seguros.
Os mais modernos freios ABS funcionam com o ESP e utilizam sensores eletrônicos que monitoram a velocidade da roda em relação ao carro, quando o freio é acionado o sistema antitravamento envia sinais que regulam a pressão nas válvulas. Técnicos europeus da Comissão Europeia provaram que o ABS é efetivo na prevenção de colisões com pedestres, ciclistas, animais e veículos fazendo curvas, diminuindo em 8% acidentes com potenciais feridos. Outra pesquisa da Universidade Monash, em Victoria, na Austrália, mostra que o freio antitravamento diminui em 18% o risco de acidentes entre veículos e 35% o risco de acidentes nos quais os carros saem da pista.
Representantes da indústria apontam dois fatores para a demora de exigências semelhantes no Brasil: os altos preços para a instalação, entre 900 e 3.000 reais, e a conscientização dos compradores sobre os benefícios do equipamento, considerados itens de luxo. Um dos empecilhos até pouco tempo para a indústria era a falta de empresas que desenvolvessem nacionalmente os produtos, afirma Marcus Vinícius de Aguiar, diretor da Fiat no Brasil e presidente da comissão para engenharia do produto da Associação Nacional de Fabricantes de Automóveis (Anfavea). “Não tínhamos fornecedores nacionais e isso também estava aliado à falta de interesse do consumidor. Hoje, o ganho de escala pela imposição do governo já fez diminuir para quase a metade o preço do airbag. Estima-se que 60% dos carros já saiam de fábrica com os dois itens, de acordo com as montadoras.”
Apenas em 2007 a alemã Bosch, precursora do ABS no mundo, abriu uma fábrica no Brasil, e sua produção chegou a um milhão de pastilhas. Segundo uma pesquisa realizada pela marca, 30% dos novos veículos de passageiros licenciados entre janeiro e dezembro de 2011 tinham freios ABS. Além disso, constatou-se que 7% desses novos veículos saíram de fábrica com o Programa Eletrônico de Estabilidade (ESP), o que representa aumento de 3% em relação ao ano anterior.
No EUA, onde o airbag e o freio ABS custam em média 50 e 90 dólares, respectivamente, a segurança é uma prioridade na hora da compra entre 65% dos homens e 74% das mulheres americanas, segundo levantamento da Consumer Reports. Por outro lado, no Brasil, uma pesquisa semelhante do Ibope Mídia e da Target Group Index de 2010 mostra que o fator é apenas decisivo para 37% dos entrevistados, enquanto outras coisas se tornam mais influentes como conforto (44%) e preço (59%). Curiosamente, a pesquisa revela que dos brasileiros que pretendem comprar um carro zero quilômetro 73% estão dispostos a pagar mais por produtos que sejam saudáveis para o meio ambiente. O que mostra como a informação e as campanhas de conscientização podem ser eficientes na promoção de escolhas mais seguras, diz Dino Lameira, presidente da ONG carioca de defesa do consumidor Proteste. “O consumidor é o elo fraco da corrente nem sempre sendo informado sobre a segurança do carro. Tudo que é vendido para ele é a necessidade de ter um carro e os mais baratos acabam sendo, invariavelmente os mais inseguros. O estado nesse caso é apenas o mecanismo pelo qual se estabelecem padrões mínimos de segurança para um problema que atinge toda a população.”
Veículos precários – Parte do esforço para que as informações cheguem ao público é a divulgação do trabalho de entidades independentes de governos e fabricantes como o Global NCAP, fundado em 1997 pelo Laboratório de Pesquisa do Transporte do governo britânico. O programa faz avaliações independentes da segurança de veículos e premia as montadoras pelos modelos que apresentam os melhores avanços tecnológicos, caso do Volvo V40 com airbag para pedestres, em 2012. O sistema de crash-test do NCAP, que avalia batidas laterais, traseiras e frontais sob as perspectivas de segurança do condutor e passageiro, difundiu-se entre os consumidores na Europa e nos EUA como fonte confiável na hora de comprar. Por essa razão, muitas montadoras acabam doando voluntariamente seus carros para testes, a fim de propagar os resultados e usá-los para desenvolver veículos cada vez mais seguros. Um exemplo famoso de seu prestígio está na história do Rover 100 da BMW, que recebeu apenas uma estrela (de um total de cinco) no quesito de proteção do condutor, em 1997, e acabou afundando nas vendas. Da mesma maneira o BMW Mini de 2007, após uma avaliação negativa de seus faróis, acabou o mudando o design para não repetir a história. “Em muitos países do primeiro mundo, como os EUA, todo modelo que é vendido deve ser testado por um programa de crash-test, caso do US NCAP, e seu resultado deve ser publicado visivelmente em cada modelo de modo que se tenha acesso à informação de um teste independente. Seria ótimo para os consumidores, se na América Latina e Caribe existissem iniciativas dos governos nesse sentido”, diz o engenheiro Alejandro Furas, responsáveis pelos testes do Latin NCAP, recentemente introduzido no continente.
Os resultados da primeira rodada de testes da sucursal latina do NCAP foram divulgados no ano passado, realizados com apoio da Proteste. Sem muita surpresa, constatou-se que os veículos são precários quando se trata de segurança e a importância dos airbags, principalmente entre os mais populares e baratos como Fiat Palio e o Gol Trend da Volkswagen, representa de duas a três estrelas a mais se comparados com as versões que não possuem o acessório. Mas os airbags somente não fazem tanta diferença, a qualidade dos carros acabou também questionada e, segundo os resultados, equivalentes aos modelos europeus de 1990. “Encontramos vários modelos dos mais vendidos na America Latina com estrutura do habitáculo instável durante o crash-test, ou seja, deformando fatalmente em cima dos bonecos nas batidas”, conta Furas. O caso mais emblemático nesse sentido é o Nissan March, também vendido na Europa sob o nome Nissan Micra. “Aparentemente são veículos idênticos, mas no estrutural mostraram diferenças significativas, apenas visíveis pelo crash-test, o que indica vários problemas materiais diferentes como a qualidade das soldaduras e dos reforços”, afirma.
O aumento da renda média e as inúmeras reduções de impostos como o IPI, no entanto, estão estimulando a demanda por carros mais completos, que possuem mais itens de segurança de fábrica. Um reflexo disso é a redução da participação dos carros 1.0, os mais baratos e menos completos de fábrica, cuja participação nas vendas chegou a seu ponto mais baixo nas vendas em fevereiro de 2012, com 42,6% dos emplacamentos, o equivalente a 86.400 unidades do tipo, segundo dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores. Uma realidade bem diferente quando comparada a 2001, ano em que o 1.0 deteve 71,1% dos negócios. “Antes o consumidor não enxergava valor na segurança, considerava algo opcional. Sem dúvida uma maior pressão do comprador vai se revelar em mais segurança para os motoristas”, afirma Flávio Meneghetti, presidente da instituição.
No cenário nacional, com o carro mais barato equipado com airbags a partir de 24.900 reais e com o ESP a partir 40.500 reais, o cinto de segurança ainda se estabelece como o principal acessório de segurança nas estradas brasileiras hoje. Dados da NHTSA mostram que ele salvou mais de 280.436 vidas entre 1974 e 2010 nos EUA. Quem sabe uma solução mais barata como o aviso eletrônico sonoro e visual que alertam para o uso do acessório e são obrigatórios desde 1975 para os americanos, possa evitar muitas mortes no Brasil também? Atualmente um único projeto de lei, de autoria do deputado Jurandy Loureiro PTB-ES, foi feito no Brasil para incluir o aviso, mas desde 2007, a proposta está arquivada na Mesa Diretora da Câmara. Sem dúvida, seria um alívio para os cofres do estado que anualmente gasta cerca de 200 milhões de reais no atendimento médico aos feridos em acidentes de carro, como aponta um levantamento recente do Ministério da Saúde.