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Referência FC: um novo modelo para formar (e vender) craques

Fundado em 2018, clube-empresa paulista lapida talentos desde o sub-9; na era das SAFs, o faro para bons negócios começa já nas categorias de base

Por Mariáh Magalhães Atualizado em - Publicado em

UMA SAF DA BASE

Francisco Ayello, uma das joias do Referência, no CDC do Jaguaré
Francisco Ayello, lateral do Referência, um dois mais de 100 garotos em busca do sonho

“O ritmo é intenso, treinamos todos os dias e abrimos mão de momentos de diversão com os amigos, mas para quem quer ser jogador esse é o preço a se pagar. É meu sonho, vou até o fim”. A fala ofegante, sob o sol forte das 14h, é de Francisco Ayello, de 14 anos, mas caberia perfeitamente na boca dos 100 outros meninos que assim como ele suam a camisa do Referência FC, uma novata equipe paulista que aposta em um modelo de negócios incomum. Na era das Sociedades Anônima de Futebol (SAFs), formato já adotado por gigantes como Botafogo e Cruzeiro, o Referência se apresenta como um outro tipo de clube-empresa: 100% formador, cujo objetivo é desenvolver atletas talentosos e negociá-los com equipes renomadas, do Brasil ou do exterior, além de exercer um papel social. Se o plano der certo, todos os lados saem ganhando: o atleta, que seguirá um bom rumo na carreira, e os empresários, que podem faturar com a joia lapidada a cada nova venda.

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O Referência Futebol Clube manda seus jogos no Estádio Municipal Hermínio Espósito, em Embu das Artes (SP) e os treinos acontecem no Clube da Comunidade (CDC) Jaguaré, na zona oeste da capital, próximo à estação de trem Presidente Altino. De segunda à sexta, passam pelo bem cuidado gramado sintético do CT cerca de 100 garotos divididos em quatro categorias (do sub-9 ao sub-17), com um treinador e um auxiliar para cada, além de profissionais de preparação física, treinadores de goleiros e médicos. O time de uniforme laranja, cujo mascote é uma águia, foi fundado em 2018, ainda como União Esportiva Referência Brasil, pelo atual presidente, Walter Junior. Seu principal diferencial em relação a outros clubes essencialmente formadores, como o Audax (antigo Pão de Açúcar Esporte Clube), é claro: o Referência não pretende ter um time profissional e brigar por títulos. A meta é formar adolescentes bom de bola e, aí sim, inseri-los no mercado.

Apesar de todos os percalços provocados pela pandemia de Covid-19, que freou a evolução de milhões de pretendentes a craque pelo Brasil, o projeto ganhou força há dois anos, quando passou efetivamente ao modelo de clube-empresa. Em 2022, o clube finalmente obteve seu grande objetivo, a filiação junto à Federação Paulista de Futebol (FPF). “Levou quase três anos. A burocracia e o investimento são muito grandes”, diz Walter. Por trás do projeto existe um investidor — que prefere manter o anonimato — que acompanha as atividades de perto, realiza reuniões periódicas e ajudou a preencher todos os requisitos da FPF. “Os custos são altíssimos para participar de todas as categorias do Estadual. Nós arcamos com o pagamento da arbitragem, ambulância, segurança, uniformes, inscrições de cada um dos atletas e tudo mais”, esclarece Walter.

Treino do Referência FC no CDC Jaguaré
O campo de treino do Referência FC, no CDC Jaguaré, zona oeste da capital paulista

O próximo passo é conseguir o Certificado de Clube Formador (CCF), que lhe permitirá receber uma porcentagem financeira sob cada negociação de um atleta de sua base. É graças a este mecanismo de solidariedade da Fifa que, por exemplo, o Santos faturou mais de 30 milhões de reais com a venda de Neymar do Barcelona para o PSG, em 2017. A quantia paga pelo clube comprador ao formador varia: é calculada de forma proporcional ao período em que o jovem esteve na primeira agremiação, dos 12 aos 23 anos. Por isso, quanto mais cedo um prodígio for descoberto, melhor. Para obter o selo, a FPF faz algumas exigências de estrutura, não só física, mas profissional como o vínculo de um assistente social, psicólogo e nutricionista ao clube, requisitos que o Referência terá de cumprir em até dois anos.

Pelo fato de ainda não possuir o CCF, o Referência já “perdeu” alguns jogadores, transferidos para Athletico Paranaense, São Paulo, Fluminense, Palmeiras, entre outros, sem um vínculo contratual. Um deles, Lucas, hoje no Flamengo, já integra as seleções brasileiras de base. “Estamos indo passo a passo, primeiro queremos ter um campo com estrutura boa, ter treinadores e meninos de bom nível. Em seguida, queremos ter um alojamento, refeitório e até estrutura de transporte. O investidor projeta lucros mais adiante", diz Walter. A Copa São Paulo de Futebol Júnior, competição que reúne times sub-20 masculinos de todo o Brasil, também está na mira do Referência. “Não sabemos se em 2023 ou 2024, mas vai acontecer”.

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AS MENTES POR TRÁS DO PROJETO

Walter Júnior (à esq), o presidente do Referência
Walter Júnior (à esq), o presidente do Referência: "Tenho o trabalho dos meus sonhos"

Walter Junior, o Waltinho, foi diretor técnico da escolinha do Barcelona no Brasil e resolveu criar a sua própria equipe, onde pudesse aplicar a filosofia catalã, agora adaptada ao mercado brasileiro. “Tenho o trabalho dos meu sonhos, sempre gostei de futebol e de criança.” Ele é formado em educação física e morou em Barcelona, na Espanha, durante 10 anos. Por lá, jogou em equipes menores e dava treinos para as divisões de base, uma experiência que o “ajudou a começar a beber da fonte”. “Não é que eu tenha trazido o Barça para cá, eu apenas implantei parte da metodologia deles. Hoje, o Referência segue um mesmo padrão de organização de treino, de conteúdo e valorização da posse de bola”. O gramado sintético, bem diferente dos tradicionais terrões da várzea paulistana, contribuiu para o 'tiki-taka'.

Outra peça-chave para que, quem sabe, um novo Lionel Messi possa surgir no CT do Jaguaré é o treinador Bruno Petri, com experiência por grandes times como Fluminense, Palmeiras e São Paulo,, e desde janeiro no Referência. Durante os 10 anos em que trabalhou no famoso CT tricolor de Cotia, ajudou a revelar atletas como Casemiro e Lucas Moura. “O que eu mais visualizo é a projeção de evolução. Há casos de jogadores fortes, mais maturados fisicamente, mas com pouca projeção de futuro.”

O Referência não se baseia na realização de “peneiras”, os famosos testes com centenas de garotos, em que “ninguém quer passar a bola para ninguém”. Os reforços geralmente chegam por indicação do sistema de captação, mas quem quiser bater à porta do clube e pedir para ser avaliado será bem-recebido. É Petri quem fica responsável por esta primeira vistoria. “Fazemos uma série de avaliações. Se o menino tiver potencial, fica com a gente.” Os aprovados, claro, não pagam nada e recebem alimentação e transporte. Por enquanto, ainda não há pagamento de salário ou ajuda de custos aos juniores, diferente do que ocorre em categorias de base de grandes clubes.

Quem mais sofre com o dilema de um clube-empresa de base são justamente os treinadores, já que o objetivo do Referência não é ganhar títulos, mas negociar atletas — e com isso desmontar seu próprio elenco.  “Tem pelo menos uns três ou quatro meninos que eu acho que não vão durar até o fim do campeonato”, diz Petri. O Referência negocia com o Atlético Mineiro um contrato de parceria, no qual o clube mineiro teria preferência para escolher quais garotos deseja testar em Belo Horizonte.

UMA VOZ FEMININA

A preparadora física Júlia Ávila indo a campo com os jovens para a disputa de uma partida do Referência FC -
A preparadora física Júlia Ávila indo a campo com os jovens para a disputa de uma partida do Referência FC -

Todos os atetas do projeto residem em São Paulo, já que por ora o clube não possui um alojamento próprio. Dentre tantos garotos, uma voz feminina se destaca. A preparadora física Júlia Avila está no Referência desde janeiro de 2021, quando deixou o time feminino do Centro Olímpico. Ela admite: pensou que seria um parto conquistar a confiança dos garotos, mas se surpreendeu positivamente. “Vim com medo de ouvir que uma mulher não teria nada a ensinar, ironias pelo fato de eu não ter sido jogadora...”, recorda. “Mas consegui logo mostrar que sabia o que estava fazendo e desde o início recebi muito respeito, é um ambiente muito agradável”.

Segundo ela, o Referência investiu bastante em infraestrutura nos últimos dois anos, apesar de ainda utilizar a estrutura alugada do CDC Jaguaré. Na academia ou no campo, é Júlia quem dosa a carga de atividade dos jogadores em formação, de acordo com as exigências de cada categoria. “Temos de controlar muito a carga, principalmente no sub-17, pois eles já são quase profissionais. O treino deles já está muito próximo do nível adulto, mas o corpo ainda não. Então tem de haver esse controle da preparação”, conta ela.

Outro detalhe que Júlia faz questão de destacar é que dentro do Referência não há o costume de “pular” jogadores para categorias acima das suas, a não ser que tecnicamente o garoto esteja muito acima da média, a ponto de se profissionalizar mais cedo. “Eu como preparadora física não acho interessante, pois os meninos têm etapas sensíveis que não devem ser queimadas, de na maturação, desenvolvimento biológico e até tático.”

Treinos do Referência acontecem de segunda à sexta, no CDC do Jaguaré
Treinos de bola parada no Jaguaré: treinadores realizam uma série de trabalhos físicos, táticos e técnicos

OLHO NELES

Murilo, goleiro do referência

Quem não sonhou em ser um jogador de futebol? No campo do Referência, esta é a obsessão geral. Um dos raros casos de "queima de queimadas" é o do goleiro Murilo Victorio, que com apenas 15 anos já atua na categoria sub-17 e demonstra ter um ótimo condicionamento físico. “Eu não vejo muita diferença de uma categoria para a outra, pois já sou adaptado a jogar com caras mais velhos e mais fortes”, diz o garoto, que decidiu ser goleiro por influência do tio e do avô, que também jogavam na posição mais ingrata do futebol. Aos seis anos de idade, Murilo começou na Portuguesa e ainda passou por Audax, Nacional e São Paulo até chegar ao Referência, indicado por Bruno Petri.

No momento, seu objetivo é se destacar no Campeonato Paulista da categoria — até o fechamento da matéria, o Referência ocupava a segunda colocação do grupo 11, com nove pontos em cinco jogos —, para no ano que vem tentar uma vaga em um dos quatro grandes de São Paulo ou até em algum clube fora do país. A exigência com os arqueiros é enorme e não basta ser hábil com as mãos . "Saber jogar com o pé é um pré-requisito hoje, e não vejo problema, tenho facilidade. Me destaco na saída do gol e em jogadas cara a cara também", conta o jovem, que sonha em um dia disputar a Premier League.

Luca, do Referência FC

Outro atleta promissor destacado pelos treinadores é o versátil meio-campista Luca Canto. O garoto de 17 anos atuava desde os 9 pelo Palmeiras, até a pandemia travar os treinamentos e atrapalhar seus planos. Levado ao Referência também por indicação de Petri, Luca diz que vem aprendendo bastante a desenvolver sua leitura de jogo e os conceitos básicos das posições de meia e volante. A autoanálise ocorre inclusive por vídeo. O clube disponibiliza um aplicativo, no qual os jovens têm acesso aos vídeos de seus jogos, com recortes destacados de sua atuação individual. "Toda sexta-feira, ao chegar em casa, acessamos o aplicativo e revemos nossos próprios lances, para analisar onde acertamos e o que precisa melhorar", conta ele.

Seja no treino ou nos jogos, os atletas estão sempre rodeados de olheiros e interessados em agenciá-los. O fato de viver com seus pais, que constantemente o acompanham, o ajuda a afastar do perigo das más influências. “Minha família sempre me apoiou muito, sempre procura conversar comigo, manter minha tranquilidade e meu psicológico muito bom”, diz ele. Questionado sobre sua escolha caso ao final da temporada recebesse uma proposta de um grande clube do Brasil ou outra de um médio do exterior, titubeou. "Essa é difícil, hein. Eu teria que conversar bem com meus pais, ambas as propostas iriam me balançar... mas meu sonho sempre foi jogar na Europa", riu o garoto, fã do croata Luka Modric, do Real Madrid.

Francisco, do Referência FC

Apesar da pouca idade, Francisco é um dos veteranos do clube. Ele treinava na escolinha do Barça e foi trazido por indicação de Walter Júnior — mas provou em campo que é muito mais do que o "jogador do presidente". "Fran" conta que em 2018 começou jogando como meia, mas decidiu migrar para a lateral em razão da grande concorrência no meio-campo e por ainda não ter o porte físico adequado para suportar tantas trombadas. Destro, ele começou na ala e esquerda e se adaptou bem. Depois, passou a volante, até se firmar como lateral-direito de uma vez por todas. "Ser versátil é uma vantagem", revela o jovem, que surpreendeu ao revelar que tem como ídolo Cafu, que se aposentou em 2008, ano de seu nascimento. "Não o vi jogar, mas assisto seus vídeos e entrevistas e quero ser como ele."

Francisco não guarda boas lembranças das peneiras tradicionais que realizou em clubes grandes. "É complicado. Tinha sempre uns 50 moleques, colocavam uma bola e deixavam rolar. A chance de se destacar assim é bem menor", diz. "Já o Referência nos abre muitas portas. Sabemos que se trabalharmos bem aqui, os clubes grandes estarão de olho." Bem orientados, os garotos optam por não revelar o time para qual torcem. "Não queremos fechar portas", é o discurso geral.

FUNÇÃO SOCIAL E PLANO B

Treino do Referência FC no CDC Jaguaré
Treino do Referência FC, no CDC Jaguaré -

O Referência quer ganhar dinheiro, obviamente, mas não só. O clube garante ter como filosofia preparar os jovens para o mercado profissional, mesmo que longe dos gramados. “Fazemos um acompanhamento das notas, conversamos muito com os pais sobre isso. Não é só jogar bola, tem que estudar, se comunicar bem, ser educado. Esse é o perfil do atleta do Referência”, diz Walter Júnior. Ao menos durante a visita de PLACAR, não foram ouvidos palavrões no campo, nem nas arquibancadas, ocupadas especialmente por parentes.

Caso a carreira no futebol não decole, existe um “plano B” bastante interessante. Walter reforça que a meta é formar o máximo possível de atletas, mas quando isso não acontece, o clube oferece é a possibilidade de intercâmbio com universidades americanas, que costumam dar bolsas a esportistas talentosos, por meio de uma parceria com uma agência especializada. “Infelizmente, não há espaços para todos, por isso estimulamos muito o nível acadêmico. O jovem pode seguir jogando bola, enquanto se prepara para ter outra profissão.” No ano passado, quatro jovens foram mandados aos EUA.

Zilson Márcio Silva, pai de um dos goleiros que joga no sub-15, que costuma acompanhar a maioria dos treinos e jogos do garoto, se disse muito satisfeito com o que encontrou no Referência. "É algo que eu converso muito com ele: vamos batalhar muito pelo sonho do futebol, mas se por um acaso não der certo, com o nível de futebol que ele tem hoje, ele pode conseguir uma bolsa atleta em uma boa faculdade, seja aqui ou fora. É um ótimo incentivo", diz. Cerca de 700 meninos já passaram pelo Referência e mais de 50 foram contratados por clubes de elite. Os investidores pretendem ainda, em um futuro não tão distante, criar o setor de futebol feminino. Sejam bem-vindos à era das SAFs, desde as categorias de base.

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