Seja na imagem de um Botafogo vitorioso sob a batuta de John Textor, seja no renascimento do Cruzeiro ou no crescimento cristalino de Bahia e Bragantino, desde 2021, há em comum entre todos estes o êxito pela mudança de antigos modelos de associação civil sem fins lucrativos para Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que, por sua vez, provocaram a ilusão de que basta uma milagrosa injeção financeira para resolver crises centenárias de camisas de peso. Ao todo, já são 117 agremiações que viraram SAFs no Brasil. A discussão é longa, mas fato é que a evolução do futebol feito à moda antiga para administrações como clube-empresa virou realidade, aproximou empresários e hoje vive um cenário em que cada vez mais os times estão interligados em grandes redes.
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Elas são conhecidas como Multi-club Ownership, ou simplesmente MCO. As redes multiclubes, em bom português. O Botafogo é um caso emblemático no país que ajuda a ilustrar e definir na prática o que é o termo. Na gestão de Textor, o Glorioso se tornou um clube-irmão de Crystal Palace (Inglaterra), Lyon (França) e RWD Molenbeek (Bélgica), todos membros do grupo Eagle, do qual o empresário estadunidense faz parte. Os times se aproximaram e facilitaram inúmeras negociações de atletas – como a do meio-campista argentino Thiago Almada, que foi campeão da Libertadores pelo Botafogo e depois rumou por um empréstimo sem custos para o Lyon. Em meio à crise do clube francês, o argentino foi vendido ao Atlético de Madrid por cerca de 30 milhões de euros (R$ 194 milhões à época). O clube espanhol, por sua vez, tem participações da Ares Management Corporation, empresa que também investe de forma indireta no Botafogo e no Lyon através da própria Eagle.
Ficou confuso? As redes podem ser complexas, mesmo. Uma empresa pode investir diretamente em um clube de futebol, que recebe investimento indireto de outra holding. Essas empresas e esses empresários podem ter ações majoritárias ou minoritárias, com participação relevante ou não na gestão do clube.
Apesar da complexidade, a lógica de negócio é simples: com participações em diferentes clubes, utilizam-se os “menores” para suprir os “maiores” em um ciclo sustentável do ponto de vista esportivo. Outro clube no Brasil que também faz parte de redes multiclubes é o Barra FC, de Balneário Camboriú (SC), pertencente ao grupo HOBRA, do Académico de Viseu (Portugal) e Hoffenheim (Alemanha), que exportou modelos de trabalho do clube alemão. Os maiores exemplos, no entanto, são Bahia, do Grupo City, e Bragantino, do grupo Red Bull – ambos bem consolidados no mercado.

Xavi Simons com o RB Leipzig em pré-temporada no Brasil – Ari Ferreira / RB Bragantino
O Tricolor de Aço já chegou até a fazer uma pré-temporada em Manchester, com o time de Pep Guardiola, em janeiro de 2024. A inserção no grupo resultou em muitas mudanças, desde estruturais e processuais até de resultados. O time voltou a disputar uma Copa Libertadores após 36 anos. Os torcedores do Bragantino sentiram a melhora esportiva, assim como os do Bahia, mas viram o time mudar da água para o vinho (ou melhor, energético). O escudo se tornou Red Bull, o uniforme é outro e, se antes o Bragantino nutria ideais e valores culturais da cidade, agora não mais. A perda de identidade dos clubes menores e a ausência de autonomia de equipes satélites é uma tônica desse processo.
O cenário de multiclubes é muito mais estabelecido no futebol europeu. Dentre os 178 clubes representados no Mapa das Redes Multi-clubes, relatório elaborado pelo Observatório Social do Futebol, iniciativa vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), um total de 127 são oriundos de países filiados à Uefa. Atualmente, 60% das agremiações que integram a Premier League fazem parte de uma holding – gigantes como Chelsea, Liverpool, Manchester United e City e Newcastle, mas também clubes menores como o Brighton e Bournemouth. Dos 36 clubes que iniciaram a disputa da última edição da Champions, vencida pelo Paris Saint-Germain, 20 estavam envolvidos em redes.
O mesmo fenômeno está presente nas demais ligas, principalmente francesa e portuguesa. A Holanda é resistência, onde nenhum clube da elite faz parte de uma rede, e na Alemanha algumas regras ainda dificultam o processo (mesmo que existam exceções). Um dos autores do relatório, Jonathan Ferreira compara o cenário europeu com o brasileiro. “A expectativa é que, no médio e longo prazo, aconteça uma maior inserção de clubes do Brasil, mas até aqui o processo tem sido gradual e seletivo e não uma invasão em massa”, diz à PLACAR, destacando a regulamentação das SAFs como essencial ao processo.

Rogério Ceni e Pep Guardiola em pré-temporada do Bahia em Manchester – Letícia Martins / Bahia
“Há estruturas de resistência em alguns clubes maiores, com identidades muito enraizadas e torcidas que se opõem a esse tipo de operação. Por outro lado, grandes clubes brasileiros já foram integrados a redes multiclubes”, completa. O Vasco tentou seguir o caminho das SAFs e se juntou à 777 Partners, mas o grupo entrou em colapso financeiro.
Não é uma exclusividade, mas as redes multiclubes também se relacionam com o chamado sportswashing – uso do futebol como ferramenta para limpar a imagem de um país, como acontece no caso do Newcastle junto ao PIF (Public Investment Fund), fundo soberano da Arábia Saudita, ou mesmo o PSG com o Qatar Sports Investments, assim como o Grupo City, ligado aos Emirados Árabes Unidos.
Além disso, existe uma grande preocupação esportiva. No cenário europeu, as redes cresceram tanto que se tornou cada vez mais comum ver equipes de uma mesma holding disputando a mesma competição. Esse cenário fica ainda mais explícito em torneios internacionais, como a Champions League. A Uefa precisou alterar seu regulamento e determinar a proibição. de que dois clubes com sócios participativos em comum possam jogar o mesmo torneio. No entanto, a própria federação europeia já abriu exceções e precedentes no passado.
O caso mais recente envolveu o Crystal Palace, rebaixado da Liga Europa à Conference por ter John Textor como acionista e dono também do Lyon. O empresário chegou a vender cerca de 43% das ações e deixar o cargo no clube francês, mas perdeu o prazo. Quem herdou a vaga foi o sétimo colocado da Premier League, o Nottingham Forest, que poderia sofrer o mesmo por causa do empresário Evangelos Marinakis, mas o grego diluiu e depositou suas ações em um fundo “blind trust” (gestor cego, na tradução livre, quando administrador e proprietário dos recursos não se conhecem), entrando nas regras da Uefa.

Torcida do Lyon protesta contra administração de John Textor – EFE/ Javier Villagarcía
No futebol sul-americano, não há fiscalização por parte da Conmebol e os times são os próprios responsáveis por informar casos de MCO. Nesse sentido, Jonathan Ferreira destaca ainda mais a importância do relatório realizado pelo Observatório como forma de difundir os dados e levar a discussão mais rápida aos órgãos.
O cenário pode ser descrito como dinâmico, ele não se comporta como uma ascensão contínua nem como uma estagnação. O que temos é um processo dinâmico e altamente instável, marcado por redes que desaparecem e outras que surgem ou ganham protagonismo”, explica. “Ele se mantém em movimento, com crises, reestruturações e novas aquisições a todo momento.”
É um movimento um tanto silencioso do mundo do futebol. As redes multiclubes potencializam alguns times, mas amarram outros a questões no mínimo polêmicas. Trata-se de um futuro inevitável do futebol ou de uma ameaça à identidade histórica de alguns clubes? O certo é que o esporte mais popular do planeta nunca esteve tão integrado – e empresarial.

Protesto da torcida do Borussia Mönchengladbach em jogo contra o RB Leipzig – Marius Becker / Getty Images
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