Opinião: o argumento que eu usaria se considerasse Messi o GOAT
Não, não vejo o argentino maior que Pelé e defenderei o Rei das tolas teses eurocentristas; mas há um aspecto no jogo da Pulga que o torna único
Antes de mais nada, e o tempo verbal do título do texto já deixa claro: não vejo Lionel Messi como o GOAT, acrônimo em inglês para o maior de todos os tempos, simplesmente pois houve quem fizesse tudo isso antes e mais vezes — Edson Arantes do Nascimento, o primeiro e eterno rei do futebol. Como brasileiro, me sinto quase na obrigação moral de defender o legado de Pelé de teses imediatistas e, sobretudo, eurocentristas como a de um post que vem causando alvoroço (engajamento, na palavra da moda), que diminui os feitos do gênio de Três Corações (MG) por “nunca ter jogado na Europa”. Ora, não há nada mais sem sentido, visto que esta foi uma escolha do próprio Pelé, baseada no fato de que a elite do futebol da época estava na América do Sul. Era o Santos FC o maior clube do planeta, aquele que arrastava multidões em excursões internacionais e ainda vencia os europeus, seja em amistosos ou no Mundial de Clubes, sem falar nas três Copas pela seleção brasileira vencidas por aquele que deu à camisa 10 o valor que ela tem hoje. Dito tudo isso: sim, Messi chegou, inegavelmente, à primeiríssima prateleira dos craques depois de erguer o Mundial do Catar aos 35 anos. Há debate e creio que o melhor argumento para a candidatura de La Pulga seja um aspecto que pode ser ainda mais apreciado das arquibancadas, um privilégio que a cobertura em Doha me proporcionou.
Nem perderei tempo aqui pesquisando estatísticas (quantos gols Messi tem a mais que Maradona ou a menos que Pelé? Quem tem mais assistências? Quantos gols de cada um foram de pênalti, etc….). O que mais me impressiona no argentino muitas vezes não entra nas planilhas de Excel. São os passes de primeira, o milésimo de segundo que ele precisa para observar a movimentação do companheiro, a facilidade de mapear todos os 8.250 m² de um campo de futebol. São os toques por elevação que não viram assistências, pois um Lautaro da vida não retribuiu o presente. Quem frequenta estádios com alguma assiduidade sabe como funciona: muitas vezes, por ter uma visão mais ampla, do alto, o torcedor consegue perceber melhor que os atletas qual era a melhor decisão a ser tomada. Quantas vezes não soltamos um desesperado: “toca, toca, fulano está livre!”? Pois bem, com Messi ocorre o oposto: é ele quem enxerga coisas que não somos capazes, nem da posição mais privilegiada, com replay em câmera lenta.
Talvez o lance da Copa que melhor represente este fenômeno seja o gol de Molina nas quartas de final diante da Holanda. Messi se move da direita para o meio, sempre com a bola colada ao pé, e, sem nem sequer precisar olhar para o lado, encontra o lateral com um passe suave, por entre as pernas do zagueiro Aké. Ninguém no estádio Lusail entendeu como Messi enxergou aquela brecha, mas ele o fez. É algo que só os raríssimos gênios do esporte seriam capazes de fazer e que La Pulga faz o tempo todo, com enorme naturalidade, há pelo menos 18 anos. O gol de Di María, o seu melhor sócio, na decisão diante da França só sai porque Messi destrói a marcação francesa em um segundo, com um domínio e um toque rapidíssimos, para Mc Allister arrancar livre. Dá gosto de ver e rever.
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— muru (@Immanoharr) December 9, 2022
Foi impactante ver de perto como Messi consegue tomar a melhor decisão em 99% dos casos, algo que o difere até dos maiores craques de sua geração. Tomemos o imparável Kylian Mbappé e o mercurial Neymar como exemplo. O francês e o brasileiro podem ser igualmente decisivos e supreendentes, mas ganham no volume, pois perdem diversas disputas até acertar a bola do jogo. Novamente me recuso a olhar as estatísticas, pois basta um olhar atento a um único jogo para perceber que Messi precisa de bem menos chances para ser tão fatal quanto – e só não foi mais no Catar pela falta de pontaria de alguns companheiros. É por isso que ele pode se dar ao luxo de caminhar pelo campo em boa parte das partidas. Mesmo sem a bola, ele observa todo o entorno, preparando o golpe de um eventual contra-ataque. Aos 35 anos, o craque nascido em Rosário e formado na Catalunha segue sendo o melhor do mundo, com sobras, pela naturalidade de seus movimentos e por tomas as decisões corretas, que por vezes pode ser simplesmente fugir de uma dividida que o coloque em risco ou soltar a bola antes de tomar uma pancada — algo que Neymar, mesmo com tantos anos ao lado do craque por Barça e PSG, jamais conseguiu absorver.
O efeito Messi, afinal, se manifesta também no comportamento dos adversários. Chamou a atenção a impotência do zagueiro croata Gvardiol, o melhor da Copa, que na flor de seus 20 anos se viu atordoado ao tentar parar o argentino, em vão, na jogada do gol de Álvarez na semifinal. “Por que ele não deu uma botinada, por que não conseguiu cortar como fez com todos os outros na Copa?”, questionamos. Suponho que tenha sido um misto de temor por ser ridicularizado por um drible inesperado e respeito pelo maior gênio que o século XXI conheceu. É verdade, os defensores não batem em Messi com gosto, como fazem em Neymar. Mas isso ocorre também pela admiração adquirida pelo argentino que jamais valorizou quedas (ao contrário, quando apanha levanta e segue em frente) e sempre se mostrou respeitoso com os rivais.
Sobre Pelé, o verdadeiro GOAT, dedicarei poucas linhas. Tudo que o Messi fez, o Rei fez antes e mais vezes. Foi arco e flecha, fez gols de todas as formas, enxergou coisas que mais ninguém poderia, arrastou multidões de fãs pelo mundo numa era pré-rede sociais, inventou lances em gramados precários, foi precursor até no marketing, e foi um atleta exemplar mesmo numa época em que a preparação física ainda engatinhava. Ganhou não uma, mas três Copas do Mundo, a primeira aos 17 anos, chapelando rivais como se estivesse no pátio de um colégio em Bauru. Talvez o brasileiro raciocinasse 0,0001 segundo atrasado em relação a Messi, mas no conjunto da obra, não dá para o hermano. Pelé é inigualável, mas que a sorte a nossa de termos podido ver outro craque da mesma espécie. Seja bem-vindo, Lionel, ao grupo dos maiorais.