Luka Modric: a bonita parábola do filho da guerra
O genial camisa 10 da Croácia aprendeu a jogar futebol nos estacionamentos dos hotéis onde a família se escondia das bombas nos anos 1990
DOHA – Poucas cenas foram tão comoventes, na Copa do Catar, do que o diálogo de Luka Modric, o genial camisa 10 da Croácia, abraçado a Rodrygo ao fim da disputa de pênaltis vencida pelo time europeu. Os dois são colegas no Real Madrid. Em espanhol, ao pé do ouvido do brasileiro, que perdera a primeira penalidade, Modric sussurrou: “Vamos, hein… Seja forte. Não foi nada, não foi nada. Você é mais forte do que isso. Todos falham, todos falham. Você vai voltar ainda mais forte. Te amo, filho. Te amo. Vamos se animar”. O croata tem 37 anos. Rodrygo tem 21. O pai do ex-jogador do Santos é apenas um ano mais velho do que Modric. Por isso, como ele mesmo revelou em entrevista antes da partida das quartas de final, brincam entre si – um é o pai, o outro é o filho.
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Modric, eleito o melhor jogador da Copa da Rússia, em 2018, é um dos personagens mais interessantes também da Copa de 2022. Pelo futebol, sem dúvida – ao lado de Messi, incomparável, ele parece ter nascido com a bola grudada aos pés –, mas também pela história de vida. Nascido em Zadar, no litoral da Croácia, aos seis anos, em 1991, ele teve de deixar a cidade para viver como nômade em hotéis, ao lado da mãe e dos irmãos. O pai havia sido convocado para lutar na guerra civil que irrompera na ex-Iugoslávia. Um dos avôs, também chamado Luka, foi brutalmente assassinado por rebeldes sérvios. Nos estacionamentos externos dos hotéis, jogava futebol. Não demorou, ao fim dos combates e com a retomada do cotidiano possível, de volta a Zadar, para ser descoberto por um olheiro a serviço do Dínamo de Zagreb. “A família era muito pobre, não havia dinheiro para as caneleiras de Luka”, disse Tomislav Basic, que o revelou. “Eu mesmo fiz caneleiras de madeira para ele”.
Modric, portanto, no gramado e sobretudo fora dele, é o retrato dos conflitos da civilização que, cedo ou tarde, culminam numa Copa do Mundo. O menino da guerra está próximo de um outro momento de grandeza indizível. Para entendê-lo, ou ao menos alcançar as circunstâncias que o moldaram, cabe um passeio ao passado. E tomo a liberdade, aqui, de relembrar um episódio vivido como jornalista e que ajuda a imaginar o universo no qual Modric cresceu. Na madrugada de domingo de Páscoa de 1991, 29 de março, há pouco mais de 30 anos, fui acordado pelo repórter fotográfico com quem dividia uma viagem de Belgrado a Zagreb. Preparávamos uma reportagem sobre o desmanche da Iugoslávia, que se acelerava inapelavelmente. Ele já tinha experiência em conflitos, trabalhava na agência Sipa e, como todo profissional de bom faro, sabia estarmos diante de algo relevante. Era um sujeito discreto, um tanto fechado, quase mudo, descoberto pela fina percepção de Pedro de Souza e Álvaro Teixeira, diretor e produtor da sucursal de VEJA em Paris. Não passava das seis horas da manhã, naquele domingo. Ouvi batidas fortes na porta do quarto. “Vamos”, disse o colega. “Acho que temos uma boa reportagem”. Estávamos hospedados numa pousada dentro do Parque Nacional dos Lagos de Plitvice, a 130 quilômetros de Zagreb, ainda coberto de neve tardia, embora já fosse primavera. Meu companheiro de viagem, sempre alerta, fora avisado de um entrevero a menos de um quilômetro de onde dormíamos.
Um grupo paramilitar sérvio – como o que matara o avô de Modric – tinha assumido o controle do parque nacional croata. Na madrugada, uma emboscada pegou de surpresa um batalhão de policiais da Croácia. Um deles, Josip Jovic, morreu na hora. Há hoje, no ponto exato onde Jovic foi executado, um memorial de louvação a um grupo tratado como heroico na recente trajetória do país. Naquele 29 de março, havia sangue vermelho na neve branca. Sentimos, o repórter fotográfico e eu, estarmos realmente diante de uma notícia forte. Mas não tínhamos certeza da dimensão, mesmo depois de termos conversado com as autoridades e moradores locais (o relato daquele conflito da Páscoa sairia numa reportagem de VEJA, quase dois meses depois, mas apenas como rápida referencia dentro de um texto maior).
Anos depois, folheando um livro editado pelo jornal francês Le Monde é que me dei conta de termos flagrado um instante decisivo, e agora confirmo pelo Google. A Guerra Civil pela independência da Croácia teria começado naquele domingo, e a ele lhe colaram uma alcunha: Plitvicki Krvavi Uskrs, em croata, “páscoa sangrenta de Plitvice”. Menos de uma semana depois do ataque, as forças croatas recuperaram o controle do parque, mas não haveria mais volta: a Iugoslávia erguida depois da Segunda Guerra começava a ruir. Há quem aponte o 29 de março como o ponto zero, há quem vá um pouquinho mais para trás, em 13 de maio de 1990, quando uma partida na capital croata entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado terminou em pancadaria, com mais de 60 feridos. O estádio Maksimir viveu cenas de horror, em que os torcedores croatas do bando Bad Blue Boys e os fanáticos sérvios da turma Delije eram a metáfora perfeita do que se veria a partir daquele momento.
Pode não ter sido num estádio de futebol, pode não ter sido no parque de Plitvice – afinal, nem mesmo se sabe exatamente se a faísca da Primeira Guerra Mundial tenha sido o assassinato por nacionalistas sérvios do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-húngaro, numa ponte de Sarajevo, em 28 de junho de 1914. Outro evento é mais comumente associado ao início da Guerra Civil dos anos 1990. Borovo Selo era um lugarejo perdido de 9 000 almas, que integrava uma parte da Croácia, cuja população, etnicamente ligada à Sérvia, se rebelou contra o movimento separatista do início dos anos 1990 – a Croácia era uma das seis repúblicas que compunham a Iugoslávia. Em 2 de maio de 1991, um tiroteio entre policiais e milicianos sérvios deixou quinze mortos. Não morria tanta gente na Iugoslávia por motivos políticos, num só dia, desde a Segunda Guerra Mundial. O bangue-bangue começou quando um micro-ônibus lotado de policiais croatas cometeu a imprudência de entrar em Borovo Selo, desafiando a população local, armada até os dentes. Em Zagreb, a capital, houve juras de vingança. “É o início de uma guerra contra o nosso povo”, disse Franjo Tudjman, presidente croata, evidentemente separatista. Em Borovo Selo, um dos milicianos sérvios que participou da pancadaria ameaçou: “Se os croatas voltarem, nos os mandaremos de volta dentro de caixões”.
Montado com os cacos dos impérios turco e austro-húngaro no fim da Primeira Guerra e convertido ao socialismo depois da Segunda Guerra, o quebra-cabeça iugoslavo conseguiu se segurar até o início da década de 80. Com a morte do marechal Tito – presidente durante 35 anos e fiador da unidade da federação, ele mesmo nascido na Croácia –, a crise econômica e a derrocada do comunismo mundo afora, as peças foram deixando de se encaixar. A ferida das questões nacionais mal resolvidas, que assolavam o mundo desde a União Soviética até o Oriente Médio, reabriu rapidamente. As duas repúblicas mais ricas, a Croácia e a Eslovênia, decididas a enterrar o socialismo, foram as primeiras na fila da secessão.
Isso tudo foi outro dia, há pouco mais de um quarto de século. Não houve tempo para tratar as dores do parto de um novo desenho geopolítico – e, naturalmente, eles acabam entrando nos vestiários. Em 2018, logo depois da vitória contra a Argentina nas quartas de final, o boquirroto zagueirão Dejan Lovren, hoje no Zenit de São Petersburgo, apareceu em vídeo entoando os versos de uma canção cuja letra faz referência ao tempo da independência dos anos 1990: “por nossas casas, por nossos irmãos, por nossa liberdade, estamos todos lutando”. A canção se inicia com uma saudação à Ustasha, a organização paramilitar croata que colaborou com os nazistas durante a Segunda Guerra e depois manteve forte influência. A Ustasha tinha como escudo a shahovnica, com um desenho xadrez vermelho que depois seria adotado pelo movimento nacionalista que chegaria ao poder com o desmantelamento iugoslavo. O xadrez é marca do brasão e armas do país, e por isso compõe o uniforme número 1 da seleção dos balcãs. Não que celebre o nacionalismo radical, mas o desenho quadriculado é referencia croata onipresente.
Não é justo tomar a parte como um todo, e a estupidez política que Lovren bancou em 2018 não é unanimidade – tanto que, agora em 2022, é tudo mais discreto na seleção da Croácia, e ele mesmo andou calado. Nem todos, entre os 26 convocados ou no país de pouco mais de 4 milhões de pessoas, pensam igual. Nem todos são nacionalistas vocacionais ou simpatizantes de ideias atreladas ao nazismo, evidentemente não. Mas são filhos de uma história muito recente para ser esquecida.
Modric é filho desse tempo. Jogava bola, como criança, enquanto os adultos se matavam. E lembro aqui do desfecho de uma outra reportagem, de agosto de 1991, feita em Sarajevo, na Bósnia. Ele narrava uma semana de conflitos na cidade. Terminava assim, depois de ouvir o ex-jogador de basquete Mirza Delibasic (1954-2001), bósnio, medalha de ouro pela Iugoslávia na Olimpíada de 1980, em Moscou:
“Delibasic é um herói nacional na Bósnia, grande jogador de basquete do país. Crianças que aprenderam a gostar do basquete com ele ensaiam rápidas partidas numa quadra próxima ao edifício do Parlamento bombardeado. Quando a frequência dos petardos aumenta, os garotos se escondem. Um fotógrafo se aproxima para retratá-los com o edifício queimado ao fundo. Um dos meninos pede: ‘Não faça essa foto. Os tchetniks vão descobrir onde fica nossa quadra depois vão jogar granada’. Quase já não há quadras de basquete ao ar livre em Sarajevo. Elas estão esburacadas pela guerra. Também não se veem crianças, fechadas com medo em suas casas, nos hospitais ou em busca de refúgio no exterior. Dusko Tomic, secretário-geral da Embaixada das Crianças, entidade bósnia encarregada de levar menores para fora de Sarajevo, descobre que VEJA é uma revista do Brasil e apela. ‘Por favor, peça ao Pelé para ele vir aqui. O mundo inteiro vai descobrir a tragédia das crianças da Bósnia’, pede, emocionado. ‘O presidente Mitterrand veio, o aeroporto foi reaberto. Mas todos aqui, sérvios bósnios, têm Pelé como ídolo, se ele viesse para Sarajevo, sob os olhos do mundo, tudo talvez possa mudar. Fale com ele’”.
Pelé não pôde ir. Mas não há dúvida: talvez apenas o futebol conseguisse mudar o curso da história. O gigante Modric, de 1m72, é prova dessa possibilidade.
Croácia e Argentina fazem a primeira semifinal nesta terça-feira, 13 de dezembro, às 16 horas, do Brasil.