Bota ponta na seleção, Telê
O apelo dominava o país por meio de um dos mais conhecidos bordões do personagem Zé da Galera, estrela do programa 'Viva o Gordo', de Jô Soares
Há exatos 40 anos, em 13 de junho de 1982, teve início a Copa do Mundo da Espanha. A seleção brasileira de Zico, Sócrates, Falcão e companhia chegou em solo ibérico com status de favorita, mas não imune a críticas. O principal alvo de imprensa e torcida era o técnico Telê Santana, em razão de sua escolha por montar uma seleção sem um ponta direita de origem. A grita era personificada na voz de Zé da Galera, um inesquecível personagem de Jô Soares, que durante o programa Viva o Gordo, da TV Globo, ligava para o técnico de um orelhão para fazer o seu apelo.
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Há 40 anos, o próprio Jô Soares escreveu para PLACAR um texto justificando o seu insistente pedido. O relato é destaque da edição de junho de PLACAR, já disponível em dispositivos digitais iOS e Android, e nas bancas de todo o país. Lê-lo, hoje, é passeio inteligente e preciso aos pontos técnicos e táticos que impediam a seleção de ser melhor do que era — e que culminariam com a derrota para a Itália. O texto foi publicado originalmente na edição de 21 de maio de 1982.
Confira, abaixo, na íntegra:
“Telê, o Zé da Galera abre o jogo toda semana no programa Viva o Gordo e eu vou abrir também aqui na PLACAR. Penso como o Zé da Galera — afinal, sou torcedor de me descabelar quando a seleção joga — e não posso deixar de insistir na pergunta: cadê os pontas, Telê? Até o técnico português joga com pontas, Telê. Por que você não? E ainda me vem com Dirceuzinho, Telê! Sei que ele é muito famoso entre os adversários, considerado um jogador impossível de ser marcado por causa da sua correria louca em campo, além de ser um perfeito ladrão de bola. Todos já sabem que ele vai devolvê-la na jogada seguinte, na hora de dar o passe.
Telê, tem de ser ponta autêntico, como o Éder. Este, pelo menos, não estranha a grama do campo. Telê, convocar um jogador lá da Espanha para ser reserva na seleção — é o que vai acabar acontecendo com o Dirceuzinho — não tem sentido. Antes de mais nada, é uma injustiça com os pontas de verdade que estão no Brasil. Na direita, por exemplo, será que você não se lembrou do Julinho — aquele da seleção de 1954 — quando viu o garoto Renato, do Grêmio, enfrentando o incrível Junior, na final da Taça de Ouro contra o Flamengo? Tem que olhar, Telê.
Depois ainda me vem com Batista, Telê. Ele é bom rapaz, bom marcador do Adílio, isso tudo está me dando um certo temor porque me faz lembrar de 1978, do grilo de defender que se abate sobre a seleção toda vez que se aproxima uma competição importante. Começa logo a haver uma preocupação em ter jogadores que não deixem o time levar gols, em troca dos que sabem faturar. Se, extremamente ofensiva, a seleção deu aquele banho de bola nos europeus durante a excursão do ano passado, para que agora pensar em jogadores com espírito inverso daquele?
Está certo trazer o Falcão. Este, sim, craque criativo e que pode desequilibrar um jogo. Acho mesmo que, com Falcão, Zico e Sócrates, o meio-campo da seleção é o que há de melhor. Chega a me deixar com confiança de, ainda sem pontas, o Brasil conseguir, através do talento desses três jogadores, o título mundial. Mas seria bem mais tranquilizador se tivéssemos esse mesmo espírito decisivo, essa mesma categoria, nos demais setores do time.
Uma posição que levanta polêmicas e desconfiança é o gol. Mas, aí, acho que temos um rapaz que até agora sempre deu certo na seleção. O Waldir Peres é um dos melhores que apareceram. E ainda há, em seu favor, a tradição. No time brasileiro, sempre se destacou e marcou época goleiro que tinha fama de tomar frango no seu clube. Na seleção, Castilho, Gilmar e Félix se consagraram como um verdadeiro paredão para os chutes inimigos. E não vejo virtudes no Waldir, como em qualquer outro jogador dos que destaco, apenas pela experiência. Aliás, acho que experiência nada tem a ver com competência em campo. Se não fosse assim, Pelé, Garrincha e tantos outros não explodiriam o mundo de alegria tão novos como
eram em 1958, na Suécia. O negócio é talento, não idade, certo, Telê?
Uma outra dúvida que eu tenho é quanto ao fato de não se aproveitar na seleção a base de um time de sucesso, como foi na maioria das vezes em que brilhamos. Em 1958, a base era Botafogo e Santos, assim como em 1962. Desta vez, tinha de ser o Flamengo. Afinal, é um time em que quase todos os jogadores já foram da seleção e hoje joga o mais perfeito, bonito e entrosado futebol em todo o mundo. Chego a apostar que o Flamengo, atualmente, não perde para seleção nenhuma do mundo. Se o Brasil pegasse esse time, colocasse nele o Sócrates e disputasse a Copa, sairia da Espanha tetracampeão, Telê. E sou uma pessoa imparcial ao falar isto, porque gosto tanto de futebol que ainda consigo ser Fluminense.
Como a sua seleção não é mesmo formada com a base rubro-negra, pelo menos deveria ter o mesmo ritmo de jogo do Flamengo, que já provou ser um sucesso. Vejo sua seleção ainda muito lenta, e fico torcendo para que ela ganhe, daqui para a frente, pelo menos a velocidade e o talento do Flamengo. Fico, portanto, ao lado do Zé da Galera, fazendo algumas críticas e tendo muitas desconfianças de uma seleção
sem pontas, sem rapidez e que às vezes dá a impressão de tomar os caminhos do defensivismo. Mas fico também torcendo com o Zé da Galera, seja qual for o time e a tática, pelo título de tetracampeão. Né mesmo, Zé?”
Texto publicado na edição de junho de 2022 de PLACAR