A literatura sobre a arte de comandar um time de futebol é vasta. Nas prateleiras das cada vez mais raras livrarias é fácil encontrar ótimas biografias de nomes como Alex Ferguson, Tite, Marcelo Bielsa e Carlo Ancelotti, por exemplo.
Uma espécie de lei não escrita entre os técnicos costuma aparecer com frequência: proteger o atleta na arena pública e cobrar no privado. É o vestiário, ou a famosa salinha da comissão, o lugar adequado para repreender jogadores por comportamentos inadequados, seja em campo ou fora dele. Assim se preserva o atleta e se ganha o respeito do grupo.
Em outras palavras, ao pular na bala pelo comandado, blindando-o da fúria da imprensa e da torcida, mesmo que injustamente, o treinador garante que o jogador infrator irá “correr por ele”, tentar se redimir, ao invés de se rebelar ainda mais.
Filipe Luís certamente compareceu a essa aula e tinha isso em mente ao chamar para si a responsabilidade pelas seguidas expulsões de Gonzalo Plata em jogos decisivos do Flamengo.
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O que Filipe Luís disse sobre Plata
“Punições sempre dependem da diretoria do clube. É claro que eu participo. Mas o que acontece? Uma expulsão como a do Plata de hoje, que foi sem querer. Foi sem querer, ele quis ir na bola e acabou pegando a perna do jogador. Um jogador que estava dando absolutamente tudo para a equipe durante o jogo, estava correndo”, iniciou o técnico após o empate em 2 a 2 com o São Paulo, na Vila Belmiro, que tirou do Rubro-Negro a chance de liderar o Brasileirão.
“Eu jamais vou culpar um jogador por cometer um erro desses. Ao contrário, eu estou aqui para colocar a culpa em mim mesmo. Eu, como maior responsável pela equipe, sou o responsável por um empate como esse“, complementou Filipe Luís.
Esta foi a terceira expulsão de Plata em menos de dois meses. As outras duas foram em jogos ainda mais decisivos, pela Libertadores, nas quartas diante do Estudiantes (este cartão chegou a ser retirado pela Conmebol, que admitiu erro da arbitragem) e na semifinal diante do Racing – um cartão injusto, diga-se, no mínimo muito rigoroso, que o tirou da final contra o Palmeiras.

Filipe Luís já tem três títulos pelo Flamengo e segue na briga por Libertadores e Brasileirão em 2025 – Gilvan de Souza/Flamengo
Os riscos de pular na bala pelo jogador
Ainda que Filipe Luís tenha argumentos para considerar que as três expulsões de Plata foram fruto de injustiça ou azar, já começam a circular nas redes sociais diversas reclamações sobre paternalismo excessivo. É aí que surge o dilema do treinador: vale mais a pena proteger a si próprio das críticas (e de uma eventual demissão) ou blindar o grupo, visando as disputas dos títulos do Brasileirão, da Libertadores e de um eventual Mundial Interclubes?
Há ainda um componente extra e que vem sendo lembrado por alguns críticos de Filipe Luís. Em julho, o treinador não mediu palavras para criticar a postura do atacante Pedro nos treinamentos, classificando-a como “lamentável” e “beirando o ridículo”.
É natural que se aponte incoerência, dois pesos e duas medidas, mas só Filipe sabe o quanto o episódio lhe sugou de energia e talvez se arrependa do desabafo público. O caso gerou grande tensão interna, mas acabou contornado com gols do atacante e elogios do chefe.

Pedro e Filipe Luis protagonizaram grande polêmica em julho – FOTO: GILVAN DE SOUZA/FLAMENGO
Se os seres humanos já têm uma tendência natural de sofrer para assumir as próprias culpas, imagine abraçar para si o pecado de outro? Há casos de treinadores que preferem repreender publicamente seus comandados, seja por entender que este é o melhor caminho para seu amadurecimento ou simplesmente por uma questão de ego.
O português Vitor Pereira, por exemplo, peitou referências do Corinthians em sua passagem por São Paulo, em plena coletiva de imprensa. Dizia que Roger Guedes não marcava e que Fagner estava fora de forma. Suas falas eram aclamadas pela torcida, mas causavam a ira no vestiário. VP quase foi campeão da Copa do Brasil, mas não renovou contrato (inventou uma desculpa sobre a sogra, quando na verdade não havia clima interno para seguir).
Há diversos outros casos, até mesmo fora do Brasil. O holandês Arne Slot, do Liverpool, disse recentemente que o atacante Hugo Ekitike foi “estúpido” ao receber um segundo amarelo por comemorar um gol tirando a camisa. Infração à regra que acontece toda semana no Brasil e talvez nunca tenha sido repreendida tão duramente por um treinador.
Eis a injustiça mais batida do esporte bretão: no fim das contas, o que vai dizer se a postura foi certa ou errada é o resultado final. Não deveria ser assim, mas é.
Neste sentido, é compreensível que Filipe Luís prefira priorizar o bem-estar interno, ainda que isso o coloque ainda mais na berlinda. Mesmo que ligeiramente, o bom ambiente tende a ajudá-lo a alcançar as glórias. É o que atestam mestres como Ancelotti e Ferguson.
Caso conquiste a Libertadores diante do rival Palmeiras, Filipinho entrará de vez para o hall de ídolos eternos da Gávea, e ninguém se lembrará de seu paternalismo com Plata ou qualquer outro jogador. Da mesma forma que de nada adiantaria limpar sua própria barra nas entrevistas, culpando os aletas pelo fracasso, caso os títulos fossem perdidos.





