Está farto de ver os jogos parados por simulações dos atletas? Se serve de consolo, este é um mal que aflige torcedores há várias décadas. Na edição 604, de 11 de dezembro de 1981, PLACAR já alertava para a “cera que tira o brilho” e promove o antijogo.
“A malandragem faz parte de qualquer esporte, mas com os exageros dos jogadores na simulação de contusões, às vezes o torcedor vê só meia partida”, desabafou a reportagem da época.
No jogo analisado que mais chamou a atenção, o Palmeiras empatou com o São José em um duelo com apenas 47 minutos de bola rolando para valer.
“Como se vê, a cera é uma prática — ou praga — largamente disseminada, e a ela recorrem eventualmente até grandes times contra pequenos, como o Palmeiras contra o São José. E, como se vê pelo veto ao juiz baiano que descontou a cera do Vitória na decisão de sete anos atrás, ainda não se chegou a acordo sobre se é justo combatê-la ou não”, destacava o texto.
Um dos principais problemas da época era a ação dos gandulas de retardar o reinício do jogo quando a equipe da casa estava vencendo – algo que melhorou recentemente, com a implementação dos cones multiball, importadas da Premier League, que ficam à beira do gramado.
Os atletas ouvidos pela reportagem brindaram o leitor com aspas impactantes: “Ah, vão me desculpar, mas se for para garantir o pão da família eu faço cera mesmo”, cravou Vladimir, do Corinthians.
“Ah, se o meu time tivesse a classe do Santos e do Botafogo dos anos de ouro, para fazer cera tocando a bola de pé em pé! Como não tem, faz o tempo passar truncando o jogo”, complementou Antônio Lopes, técnico do Vasco.
O blog #TBT PLACAR, que toda quinta recupera um tesouro de nosso acervo, reproduz o texto na íntegra abaixo:
A cera que tira o brilho
A malandragem faz parte de qualquer esporte, mas com os exageros dos jogadores na simulação de contusões, às vezes o torcedor vê só meia partida
Por: Equipe PLACAR
No jogo contra o Fluminense, o goleiro Mazarópi, do Vasco, demora a repor a bola em jogo, leva o terceiro cartão técnico que o afastará da partida seguinte mas sai satisfeito: seu time segurou a vitória.
Começa um Sport x Ferroviário, no Recife, e a bola é atrasada para o goleiro Salvino, do “Ferrim”’, que a segura e, descaradamente, cai simulando ter se machucado.
Em São Paulo, a torcida do Palmeiras consome duas bolas que caíram nas arquibancadas, para garantir um magro 1 a 1 contra o São José. Em Campinas, os bem instruídos gandulas do Guarani repetem a cada jogo — se isso convém — o enfadonho e enervante ritual de prender a bola.
Em Maringá, no Paraná, o juiz Bráulio Zanotto costuma expulsar os gandulas antes do jogo porque já sabe de suas intenções. No Rio Grande do Sul, o árbitro Roque Gallas foi obrigado a dar nove minutos de desconto numa partida em Livramento.
Em Pernambuco, Oséas Gomes provavelmente bateu um recorde: já deu descontos de 17 minutos. Na Bahia, o juiz Anivaldo Magalhães não apita jogo do Vitória desde que esse clube perdeu o Ba-Vi da decisão de 1974 aos 94 minutos.
Como se vê, a cera é uma prática — ou praga — largamente disseminada, e a ela recorrem eventualmente até grandes times contra pequenos, como o Palmeiras contra o São José. E, como se vê pelo veto ao juiz baiano que descontou a cera do Vitória na decisão de sete anos atrás, ainda não se chegou a acordo sobre se é justo combatê-la ou não.
Atualmente, ela é objeto de estudos da FIFA (veja quadro). No Brasil, Áulio Nazareno, presidente da Cobraf (Comissão Brasileira de Arbitragens de Futebol), anuncia medidas para coibi-la, temeroso de que os severos árbitros europeus peguem nossos jogadores desprevenidos durante a próxima Copa do Mundo: “No encontro com os juízes brasileiros, em janeiro, vou alertá-los novamente para este problema. O que lhes tem faltado é energia”.
De fato, por mais que se inventem regulamentos que reprimam a cera, é aos juízes — sempre tão prepotentes em outras questões de disciplina — que cabe fazer o tempo de jogo jogado se aproximar ao máximo dos 90 minutos. E, nesse ponto, o que há não é mais exagero, é abuso.
Recentemente, PLACAR cronometrou duas partidas do Campeonato Paulista — Corinthians x Guarani, em que se esperava uma aberta luta pela vitória, e Palmeiras x São José, em que os jogadores das duas equipes temiam a derrota. O primeiro registrou 65 minutos de bola rolando; o segundo, apenas 47 minutos.
Costuma-se comparar um jogo de futebol a um espetáculo musical, em que a cera dos jogadores corresponderia à hipótese absurda de os músicos incluírem o tempo gasto na afinação dos instrumentos no tempo de duração do espetáculo.
Não chega a ser uma comparação feliz, porque o público do futebol participa muito mais dos acontecimentos — inclusive apóia a cera quando sente que esta é necessária. É em meio a esse turbilhão de interesses que o juiz deve se movimentar para manter o pulso não em nome do espetáculo mas da lei do jogo.
Arnaldo César Coelho, do Rio, conforma-se com o fato de que no Maracanã são postas seis bolas à disposição. Mas Dulcídio Vanderlei Boschilia, de São Paulo, é mais radical: só permite o uso de duas bolas, adverte os fazedores de cera e dá descontos. “E se um dia as duas bolas sumirem na arquibancada encerro o jogo”, ameaça.
Mas não é fácil. Os nove minutos que o gaúcho Roque Gallas descontou no segundo tempo de um Armour x Inter na verdade deveriam ter sido 12, mas como o Inter conseguiu a vitória nesse tempo suplementar o árbitro foi acusado de venal pelo diretor de futebol do Grêmio, Rafael Bandeira. E, às vezes, os cartolas que mais reclamam são os mesmos que pagam gandulas para retardarem a devolução das bolas.
“Se os juízes permitirem a cera desses gandulas, vai chegar o dia em que um jogador mais irritado partirá para a agressão”, adverte o juiz carioca Valquir Pimentel. Esse dia já chegou. No campeonato paranaense deste ano, em Maringá, o centroavante Paulinho, do Londrina, desferiu um pontapé num menino que teimava em não soltar a bola. Paulinho acabou expulso.
Na hora de analisarem a cera como instituição, no entanto, raros são os jogadores que a condenam. Como Mário, do Corinthians: “É uma indecência, um desrespeito aos torcedores”. Mas Vladimir, seu companheiro de clube, adota a postura mais comum entre os brasileiros: “Ah, vão me desculpar, mas se for para garantir o pão da família eu faço cera mesmo”.
João Leite, goleiro do Atlético, que cai ao menor esbarrão quando quer segurar o jogo, torna-se um pouco cínico: “Só quando o goleiro cai é garantido que o juiz vai parar o jogo”. E chega-se ao realismo do técnico Antônio Lopes, do Vasco: “Ah, se o meu time tivesse a classe do Santos e do Botafogo dos anos de ouro, para fazer cera tocando a bola de pé em pé! Como não tem, faz o tempo passar truncando o jogo”. Lopes não precisaria evocar os velhos Santos e Botafogo. Bastaria citar o Flamengo.
Outro argumento comum é o de que a cera não visa a roubar do público uma parte do espetáculo e, sim, esfriar o ânimo do adversário — na teoria ninguém se importa que o juiz dê os descontos que quiser. Mas, na prática, o que se vê é jogadores, técnicos e dirigentes pressionarem o árbitro aos gritos tão logo o cronômetro marca os 45 do segundo tempo; e, quando o jogo termina, outros jogadores, técnicos e dirigentes reclamando que ele não deu os devidos descontos.
Enfim, nesse mundo de malandragens e pressões, quem tem razão é Reinaldo, do Atlético: “Quando o adversário faz cera, nós achamos ruim. Quando somos nós que fazemos, não achamos nada”.