Scarpa exclusivo: como o ‘diferentão’ se levantou do tombo no Palmeiras
De encostado em 2020 a peça-chave do time de Abel Ferreira, meia se reencontrou buscando hobbies nada convencionais como skate, cubo mágico e leitura
Foi uma queda, e uma queda feia. Só assim Gustavo Scarpa percebeu que precisava mudar completamente o rumo para dar a volta por cima, na vida e na carreira. Em seu pior momento no Palmeiras, encostado por Vanderlei Luxemburgo e sem perspectiva de jogar de novo, o meia que chegara a peso de ouro dois anos antes estava em uma encruzilhada. A reviravolta só começou quando ele subiu no skate pela primeira vez, tentou uma manobra e caiu. E uma vez no chão, percebeu que só tinha uma escolha: levantar-se.
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“Foi uma libertação. Tive até atrito com o meu pai, porque ele estava preocupado com o meu futuro, mas aí uma frase tomou mais poder na minha vida: só se vive uma vez”.
O episódio, de junho de 2020, foi lembrado em meio a risadas em um papo com a reportagem de PLACAR. Ao contrário daquele, o Scarpa de hoje é leve, confiante, seguro de si. É bem fácil ver que esse estado de espírito se reflete no meia que, dentro de campo, é um dos destaques do Palmeiras multicampeão dos últimos anos e um dos melhores jogadores do Campeonato Brasileiro, que o time caminha para conquistar nesta temporada. A poucos meses do fim do contrato – vai realizar o sonho de jogar na Premier League no ano que vem, pelo Nottingham Forest -, ele vive sua melhor fase, seja vestindo o uniforme alviverde, seja se divertindo com seus hobbies nada comuns no mundo dos boleiros.
A matéria completa com o perfil de Gustavo Scarpa pode ser acompanhada na edição de outubro de PLACAR, já disponível em sua versão digital em dispositivos iOS e Android e nas bancas de todo o país). Veja a seguir alguns dos principais trechos da entrevista:
PLACAR – Como está o inglês? Está fazendo aulas?
Scarpa – (Em inglês) Well, I already have a very good English, but I don’t do any English classes. I think I’m ready for this adventure. To me it’s an honor to play in the Premier League and I’m very happy for this challenge.
Tradução: “Bem, eu já tenho um inglês muito bom, mas não faço aulas de inglês. Acho que estou pronto para essa aventura. Para mim é uma honra jogar na Premier League, e estou muito feliz por esse desafio”.
Está bom de inglês já, né? Na verdade eu não faço aula de inglês, só na escola mesmo. Meu aprendizado veio de filmes legendados e de muita música que escuto desde criança. Ouvia muito Linkin Park, Nirvana, Eminem. Colocava as músicas dele, a letra do lado, e ouvia, lia pra caramba. Essa foi a preparação do inglês para a minha vida. Mas acho que vou treinar uma entrevista, para não passar vergonha em inglês.
PLACAR – Você falou do rock, que é uma das coisas que faz você ser um ponto fora da curva no meio do futebol, além de hábitos como leitura, cubo mágico, andar de skate… Como é isso? Já se sentiu um peixe fora d’água?
Scarpa – Nunca foi barreira para mim. Aquelas frases clichê: ‘ah, não me importo com o que os outros pensam’. A opinião dos outros tem um peso para mim, mas não para a forma como escolhi viver, sabe? Os meus gostos, os meus hobbies. Sempre me senti um cara diferente, com gostos diferentes no meio do futebol, seja na música, em livros… quer dizer, só o hábito da leitura já é um pouquinho diferente. Mas isso nunca me preocupou, pelo contrário. Sempre tentei ver com bons olhos, porque quando subi para o profissional do Fluminense, o fato de ser bem diferente dos outros moleques que estavam subindo foi um fato que me ambientou mais rápido. Eu era pego para ser zoado direto. Isso que eu faço hoje em dia, do cara chegar e ser zoado, é porque eu fui muito zoado na época.
PLACAR – Por que você era zoado?
Scarpa – O Fluminense com Sóbis, Leandro Euzébio… os caras pegavam muito no meu pé. Mas sempre levei numa boa, dava risada, nunca me afetou em nada. Sempre soube levar isso muito bem. Eu tinha um bigodinho, por incrível que pareça era muito mais magro, cristão… fiz escolhas completamente diferentes do que as pessoas fazem, gostava de rock.
PLACAR – É fácil para você conhecer gente nova, fazer amizade?
Scarpa – É fácil, mas eu sou um cara muito seletivo. Da mesma forma como sou um cara de boa com todo mundo, de fazer a pessoa se sentir ambientada, de conversar, de ser simpático, eu tenho um receio de fazer amizades. Sou uma pessoa de criar vínculos mais fortes porque, como eu disse, sou bem seletivo. Tenho tanto contato, tanta amizade com pessoas que vivem uma vida completamente diferente da minha, com opiniões, com religiões diferentes da minha, e levo isso super na boa, acho que é uma forma de crescermos. Estar em contato com pessoas que têm visões diferentes faz com que a gente cresça, com que a gente aprenda. E levo isso para mim.
PLACAR – Como foi o rompimento dessa barreira do boleiro? Essa “libertação” da qual você fala, que começou com o skate.
Scarpa – A libertação foi um momento… eu nunca tinha vivido algo assim, de sair da bolha do futebol para um outro esporte, porque sempre que eu ia fazer alguma coisa além do futebol, tinha o futebol envolvido. Era o futevôlei, o futemesa, fute alguma coisa, vídeo game de futebol. E aí um dia eu estava na casa de um amigo, e o moleque estava lá com um skate, e eu estava em uma época muito em baixa no Palmeiras. Foi bem no começo da pandemia, em Hortolândia. Em junho de 2020. E aí subi no skate e o meu corpo estava com uma necessidade de algo novo. Quando subi no skate, tentei um “ollie” e tomei um capote monstro, que os caras até assustaram. A primeira coisa que pensei foi: “caramba, era isso que eu estava precisando para a minha vida”.
PLACAR – Então foi na queda que você percebeu que era aquilo que estava faltando para dar a volta por cima.
Scarpa – Na queda. Cheguei em casa, pedi uma ajuda para um amigo, já comprei o meu skate. Alguns dias depois, chegou. Fui para Campinas e comecei a fazer aula, segurava a mão do professor, o Italo Farias. Quando vi, comecei a ser tomado pelo skate, era um negócio surreal. Tive atrito com o meu pai, porque ele estava preocupado com o meu futuro, então tivemos algumas discussões, mas foi aí que a frase tomou mais poder na minha vida: “Só se vive uma vez”. Amo a minha profissão, amo o que eu faço, mas não vou ficar preso a isso. É claro que, com os títulos, fica mais fácil de divulgar, mostrar para as pessoas. Até porque, se não posta, hoje em dia, é sinal de que não acontece, ou quase isso. Se a fase não fosse boa, eu não iria postar. Mas sendo campeão da Libertadores… o pessoal do Palmeiras já sabia que eu estava andando de skate tinha mais de um ano, e o quão benéfico estava sendo para mim mentalmente, fisicamente, então essa barreira foi quebrada com os bons resultados.
PLACAR – Você já converteu alguém do Palmeiras para os seus hobbies?
Scarpa – A leitura, alguns dos meninos passaram a ler com mais frequência, o Veiga, o Luan… não sei se por influência direta, ou indireta. O Veiga acho que é o que tem lido mais. No skate ninguém se arriscou. O Veiga e o Matheus Fernandes foram comigo no wakeboard. Foi bem no começo. Eu hoje, modéstia à parte, sou bom, melhor até do que no skate. Eu estava no terceiro dia no wake e não tinha conseguido ainda ficar de pé. O Veiga no primeiro dia deu a volta, me fez pensar que eu não levava jeito. Mas eu insisti e hoje estou brilhando (risos).
PLACAR – O quanto a chegada do Abel Ferreira teve a ver com a sua volta por cima no Palmeiras, além do seu próprio esforço? Você disse que talvez estava no seu pior momento…
Scarpa – Ah, foi o pior, hein? O Abel teve importância, eu sinto que nesses últimos dois anos o meu futebol evoluiu muito taticamente, defensivamente. Eles (comissão técnica) conseguiram fazer com que eu enxergasse que eu poderia ter um desempenho defensivo melhor, sem perder o ofensivo. E nisso entra a questão física, pois tenho feito coisas que não imaginei que fosse aguentar: sequência de jogos, partidas intensas e chegar inteiro no final. Isso tem a parte deles, de me fazer enxergar isso de uma maneira indireta, porque não me falaram, mas com atitudes pude perceber, e também a minha dedicação no extracampo. Cuidados com parte física, com alimentação, que melhorou muito. Minha vida não é só Trakinas e leite condensado (risos).
Eu vivi umas três semanas de treinos bem ruins no Palmeiras, cheguei até a ficar fora de jogo. E aí eu estava com uma proposta para sair, uma proposta top para ganhar quase o dobro, do Atlético Mineiro. Só que aí eu pensei que tem tanto jogador que passa algum perrengue no time e já pede para sair. Eu falei para mim mesmo: você sabe do seu potencial, sabe o quanto você é bom, não adianta ficar pulando de galho em galho. Está em você a solução. Tem uma frase do César MC que é: “me diz algo mais motivador do que não ter saída”. E eu me senti completamente sem saída. Pensei: é isso que eu tenho, não tem como ficar pior. Se vira, Scarpa. E as coisas fluíram de um jeito maravilhoso, graças a Deus.
PLACAR – Você já falou que o Abel é o primeiro treinador que explica tudo o que o jogador tem que fazer em campo, parte ofensiva, defensiva, bola parada… Como é isso exatamente?
Scarpa – Não só o Abel, mas a comissão toda. Eles são muito entrosados e dedicados nessa parte tática. Tem cinco membros na comissão: um cara cuida da bola ofensiva, outro da bola defensiva, outro da bola parada ofensiva, da bola parada defensiva, então é tudo muito bem explicado. Já conversei isso com outros jogadores, é legal e é muito mais leve você entrar em campo sabendo tudo o que você tem que fazer. Se a equipe adversária vier com um plano diferente, já nos adaptamos aos caras. É claro que as vezes não é a melhor estratégia, mas todo mundo sabe o que fazer. E isso, com o Abel, muito mais do que com qualquer outro treinador. O que não tira os méritos dos outros, cada um tem sua forma de trabalhar. Comigo, no caso, a que mais funcionou foi a dele.
PLACAR – Tem quem ache que esse método deixa os jogadores robotizados, sem liberdade de decisão em campo. O que você acha disso?
Scarpa – O meu pai sempre me falou que, sem a bola, eu deveria fazer o que o treinador mandasse, mas com ela, o que eu quisesse. Na cultura do Brasil não tem essa dedicação na parte defensiva. Sem a bola, realmente, fazemos tudo o que ele manda, mas com a bola ele dá liberdade, principalmente no último setor do campo. Do meio para trás há um padrão, tem uma forma de sair jogando, tem uma seriedade. Do meio para frente, tem liberdade. Ele sempre fala que uma das formas da gente fazer gol, além da bola parada, além da transição ofensiva, é o talento natural. Tivemos recentemente o gol do Rony de bicicleta, não tem o dedo do treinador ali. É a liberdade do cara. O Wesley vir pedalando lá de trás, a mesma coisa. Então temos, sim, liberdade para fazer o que queremos ofensivamente. Claro que não 100%, porque existe um trabalho, uma estratégia toda por trás de tudo.
PLACAR – Como é seu relacionamento com a torcida? Você gosta dessa loucura de altos e baixos ou prefere uma linha mais racional?
Scarpa – Eu prefiro de um relacionamento mais linear. O Willian (ex-Corinthians) devia estar muito mal acostumado, né? Anos lá na Inglaterra, tinha esquecido da loucura que é isso aqui, mas é um cara sensacional também. Enfim, escolhas. Eu acho uma loucura tudo isso, de ser aplaudido na quarta, vaiado no domingo e aplaudido de novo na quarta. Falam que temos que entender, que o torcedor é apaixonado. E eu super entendo, ali no campo, aplaudindo ou vaiando, cada um faz o que quer. É claro que se eu fosse dar um conselho, seria: apoie, porque tem tantos jogadores bons que às vezes a vaia atrapalha. Não é todo mundo que tem uma personalidade forte, que vai fazer acontecer mesmo sendo vaiado. Mexe com o cara, o cara é ser humano, sabe da responsabilidade que carrega. Meu conselho para o jogador é: finge que é surdo. Sei o quanto é difícil pegar na bola e ser vaiado. Mas cada um torce do jeito que quer, fala o que quer, não partindo para a violência. A vitória esconde muitas coisas, e as derrotas também, muitas coisas boas que acontecem. E a gente sabe que no futebol, principalmente no Brasil, o que importa é o resultado. Ganhando, você pode andar de skate, brigar, pode fazer o que quiser.
PLACAR – Quando você tomou a decisão de ir para a Premier League? Sabe que o Nottingham Forest lá não está nada bem, na zona de rebaixamento…
Scarpa – Na verdade, essa decisão de ir para a Premier eu tenho desde os meus 11 anos, era o meu maior sonho na Europa. Eu confesso que pensei que já que estava terminando o contrato, que não renovaria, imaginei que conseguiria ir para a Europa por ter passaporte italiano, mas não imaginei a Premier League. Imaginei um clube menor da Espanha, da Itália, alguma coisa assim, mas aí quando chegou a de um clube da Premier… com 28 anos de idade? Sei que não sou velho, mas que jogador saiu direto do Brasil com 28 e foi para lá? Fiquei feliz, porque passa um filme pela cabeça, é um sonho de criança. Falei: é isso que eu quero. Sei da situação difícil do time, vejo os melhores momentos. Tento não ver muito para não acabar esquecendo daqui e focar lá. Acompanho de longe, não muito. Sei que vai ser uma aventura, vai ser difícil, mas quero respirar novos ares. Estou super empolgado.
PLACAR – Você já sentiu um gostinho de enfrentar um time grande da Europa no Mundial, contra o Chelsea (o Palmeiras perdeu por 2 a 1 na prorrogação e ficou com o vice). Sentiu muita diferença na parte técnica, física, tática?
Scarpa – Não, acho que foi mais a questão da atmosfera do jogo. É diferente você entrar num estádio top, jogar contra um time mundialmente famoso, com grandes jogadores… essa atmosfera interfere muito, nós não estamos acostumados. Para os caras, é só mais um jogo. Estar lá numa Premier League faz com que esses jogos que são surreais, empolgantes, fiquem mais normais. Não que vá perder a graça, mas você consegue controlar mais a parte emocional. Isso para mim vai ser muito bom. Na parte física, não vi muita diferença. Só na questão da imposição de jogo, que eles impõem demais. Dominam mesmo, vão para dominar a partida do início ao fim. Coragem para jogar, ter a bola, perder e ir buscar na frente de novo.
PLACAR – E a seleção brasileira? Você ainda pensa nisso, ainda acha que dá para chegar lá?
Scarpa – Acho extremamente difícil, mas possível. Da mesma forma que eu achava que não iria rolar uma ida para a Premier League com 28 anos, e a chance apareceu. Eu não pago para sonhar, continuo acreditando enquanto eu for atleta profissional, enquanto estiver desempenhando. Não digo que me frustrei, pois sei que é concorrido, com jogadores muito bons. Os caras da seleção merecem estar lá e trabalham como eu. É esperar, e o que tiver de ser meu, será meu. Não está nas minhas mãos, mesmo desempenhando, você está nas mãos de outra pessoa, muito competente, que escolhe.
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