Ex-chefe do DM do Flamengo falou em "lesão crônica e irreparável" do meia uruguaio, que estuda as medidas cabíveis. Especialistas ouvidos por PLACAR confirmam desvio de conduta
José Luiz Runco foi demitido do cargo de chefe do departamento médico do Flamengo. O comentário vazado do doutor sobre a condição física do meio-campista uruguaio Nico De la Cruz em um grupo de WhatsApp gerou uma nova crise na Gávea. Runco ainda pode ser alvo de medidas legais do atleta uruguaio, por suposta quebra de sigilo médico.
O site ge publicou na última terça-feira, 22, o vazamento da mensagem de Runco ao grupo “Flamengo Barra”, na qual o médico cita uma “lesão crônica e irreparável”.
“Prezado João. Boa tarde. Vou tentar passar a situação do De la Cruz. Jogador comprado em outra gestão, sem a menor condição, pois apresenta uma lesão crônica e irreparável no joelho direito, e uma lesão também no joelho esquerdo. Como somos bípedes, temos dificuldades de equilíbrio e equilíbrio muscular se algum membro já estiver afetado. Estamos tentando fazer o possível para que ele possa participar, mas é muito complicado. E, quanto à venda, só se houver algum clube que tenha interesse por outro motivo e não para jogar futebol competitivo. Atenciosamente”
Nesta quarta-feira, 23, o clube optou pelo desligamento do profissional, que chefiava todos os departamentos médicos do clube, mas não atuava especificamente no futebol. A informação da demissão foi inicialmente divulgada pelo jornalista Bruno Castanha.
O caso gerou enorme desconforto entre atletas e comissão técnica. Por meio das redes sociais, De la Cruz se pronunciou ao publicar uma foto com a legenda: “Nunca deixe que ninguém te diga que não pode fazer algo”. O compatriota Arrascaeta postou uma foto a seu lado, com a mensagem: “se trata de cuidar dos nossos, simples assim.”
Arrascaeta em claro apoio a Nico De La Cruz acaba de postar: “Se trata de cuidar dos nossos, simples assim” pic.twitter.com/3MGXa5YoZj
— Raisa Simplicio (@simpraisa) July 22, 2025
Dias depois de solucionar a situação envolvendo Pedro, diretoria e o técnico Filipe Luís, com o atacante marcando o gol da vitória sobre o Fluminense, o Flamengo se viu envolto em mais uma crise interna.
Segundo informações do canal uruguaio El Espectador, o estafe de De la Cruz enxerga quebra de sigilo médico por parte de Runco e cogita tomar medidas legais contra o experiente profissional com longa passagem pela seleção brasileira.
AHORA| Nico De La Cruz evalúa iniciar acciones legales contra el médico de @Flamengo que filtró mensaje sobre su supuesto problema crónico de salud. Lo contamos en @MananaDelFutbol por @ElEspectadorUy pic.twitter.com/WSLVO7we3k
— Sebas Giovanelli (@SebasGiovanelli) July 23, 2025
De La Cruz, de 28 anos, chegou ao Flamengo vindo do River Plate, contratado por R$ 102 milhões, no início da temporada 2024. À época, a imprensa argentina já falava em uma “lesão crônica” no joelho esquerdo. Oficialmente, o jogador da seleção uruguaia não participou do último Fla-Flu por decisão técnica técnica de Filipe Luís.
PLACAR procurou médicos com experiência no futebol profissional para avaliar o caso. Um deles disse, sob anonimato, que Runco, de fato, cometeu um desvio ético ao comentar sobre o caso fora do ambiente profissional. “Não pode, ele deu muito mole”, comentou. Os outros preferiram não comentar.
O Conselho Regional de Medicina do RJ (Cremerj) enviou a seguinte nota:
O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) informa que casos concretos só podem ser julgados dentro de um processo ético-profissional regularmente instaurado. Nesse sentido, o Conselho iniciará um procedimento apuratório.
Gustavo Justino de Oliveira, Professor de Direito Administrativo na Usp e no Idp (Brasilia e SP), considera ter havido quebra de sigilo. Confira, abaixo, sua avaliação:
A divulgação feita pelo Dr. José Luiz Runco, contendo informações clínicas específicas sobre o atleta Nico De La Cruz, configura, em tese, quebra de sigilo médico, salvo se houver autorização expressa do jogador, o que, aparentemente, não ocorreu.
O Código de Ética Médica (art. 73) proíbe expressamente a revelação de fatos obtidos em razão do exercício profissional sem consentimento do paciente, e essa obrigação se mantém independentemente do canal utilizado, seja formal ou informal, presencial ou digital.1 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem jurisprudência consolidada nesse sentido.
Em decisão recente, no AgRg no RHC 181907/MG, a Corte reconheceu que a comunicação de fatos clínicos por um médico à autoridade policial, sem autorização do paciente ou previsão legal, violou o sigilo profissional. A relatora, Ministra Daniela Teixeira, destacou que o sigilo médico é protegido por norma de ordem pública e não pode ser relativizado fora das hipóteses
legais.
Apesar de tratar de contexto distinto, o precedente se aplica ao caso do atleta, pois o núcleo da decisão é a divulgação indevida de dados médicos sem justa causa, o que também compromete a confidencialidade e expõe o atleta a possíveis danos ao dizer “só se houver algum clube que tenha interesse por outro motivo e não para jogar futebol competitivo”.
Dessa forma, se confirmada a divulgação sem autorização, há respaldo jurídico para que o atleta adote medidas legais, inclusive por danos morais, em razão da exposição indevida de sua condição clínica.
Talita Garcez, sócia do Garcez Advogados e Associados, escritório com mais de 10 anos em experiência Direito Desportivo, segue a mesma linha:
“As informações confidenciais do paciente, obtidas no exercício da profissão, devem ser mantidas em sigilo, e o compartilhamento, ainda que em grupos de whatsapp, configura quebra de sigilo profissional e consequentemente constitui uma violação ética.
Além da possível sansão ética pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), o atleta pode buscar na via judicial ação contra o médico para reparar danos morais e materiais sofridos.
Não há dúvidas que a imagem do atleta fica prejudicada com a exposição de informações não autorizadas sobre eventual prejuízo da sua condição física ou estado de saúde, uma vez em que o exercício da sua profissão é intrinsicamente ligado a estas condições”
O ex-jogador Zinho, hoje comentarista da ESPN Brasil, disse ter conversado com Runco, que admitiu ter sido “ingênuo”. O médico quer descobrir o responsável pelo vazamento e possivelmente processá-lo.
“Eu conversei com o doutor Runco. Foi uma conversa dele com um médico do grupo Fla Barra. É um grupo que tem até ex-presidentes. O Runco estava conversando com outro médico, e alguém do grupo vazou. O doutor Runco reconhece que foi ingênuo. Era uma conversa de médicos, ele pode até processar essa pessoa, porque é conversa de médicos, tem que ficar entre eles… Mas foi em um grupo. O vazamento não foi do médico. O Runco está buscando saber quem vazou, até para tomar as medidas. O Runco não é muito de usar mídias sociais, ele reconhece que a mensagem foi em um grupo e outras pessoas leram. Ele deu explicações médicas. Mas ele mesmo reconhece: ‘poxa, não era para eu ter falado no grupo, eu deveria ter enviado no particular’.”
José Luiz Runco foi médico da seleção brasileira em Copas do Mundo – Acervo/PLACAR
Antes da demissão, o Flamengo informou, em nota na última terça-feira, que “não comentará declarações extraídas de conversas privadas e pessoais, normalmente fora de contexto e, em alguns casos, obtidas por meio de condutas criminosas — sejam elas verdadeiras ou não. O clube segue focado em seus objetivos esportivos neste segundo semestre, mantendo o compromisso com um ambiente profissional e responsável”.
Já nesta quarta, antes da demissão, a assessoria de futebolk soltou outra nota oficial:
A Diretoria de Futebol do Clube de Regatas do Flamengo esclarece que a mensagem vazada recentemente não foi escrita por nenhum dos cinco médicos que integram o departamento do futebol profissional: Fernando Sassaki (ortopedista e chefe do setor), Luiz Macedo (cardiologista), Dieno Portella (ortopedista), Vitor Pereira (ortopedista) e Bruno Hassel (radiologista). Como é de conhecimento público, são esses profissionais os responsáveis pelo atendimento diário aos atletas em treinamentos, jogos e viagens, além de levarem de forma constante e transparente todas as informações de interesse da imprensa e da torcida.
A Diretoria de Futebol reitera que não comentará especulações e manterá seu foco única e exclusivamente em preservar o alto nível de performance e concentração que levaram o Clube, neste primeiro semestre, ao melhor desempenho entre todos no cenário nacional.
O Flamengo seguirá trabalhando com seriedade, buscando seus objetivos esportivos, cuidando tecnicamente da saúde de seus atletas, investindo em uma equipe de alto nível e reforçando seu elenco com jogadores do padrão de Seleção.
O clube carioca ainda informou que De La Cruz está sendo preservado para se recuperar da melhor forma de uma “lesão traumática (entorse no joelho esquerdo).” O jogador tem 61 partidas pelo Flamengo (20 em 2025), com três gols e seis assistências.