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Os mortos falam em Moscou

Um passeio dominical pelo cemitério de Novodevichi, onde repousam os bons e os maus momentos da humanidade

Por Fábio Altman, de Moscou |

Cemitério de Novodevichi, em Moscou, Rússia

E a Alemanha não morreu em Sochi contra a Suécia, salva aos 94 minutos pelo extraordinário Toni Kroos, o carrasco dos 7 a 1. No sábado (23), ele marcou o gol da vitória contra a Suécia, 2 a 1, e os tedescos passaram da desclassificação precoce para o lugar de favoritos, de onde nunca deveriam ter saído. Tivessem morrido, e se os russos não se ofendessem com o anátema, os alemães teriam agradável descanso no cemitério de Novodevichi, colado ao mosteiro de mesmo nome, muito próximo ao estádio Lujniki.

Inaugurado em 1898, o imenso jardim abriga mais de 27.000 sepulturas. Poucos lugares no mundo são tão propícios para o casamento do presente e do passado, a união das glórias e das tragédias, das fortalezas e fraquezas da humanidade, quanto as alamedas verdes pelas quais circulam a história viva de nosso tempo. As lápides do Novodevichi são como “um álbum de fotografias em três dimensões”, como descreveu, ainda no tempo do comunismo, um artigo do The New York Times.

Túmulo de Nikita Khrushchóv no cemitério de Novodevichi, em Moscou, Rússia Fabio Altman/VEJA.com

Para os russos, a morada tem especial ressonância. Num domingo de sol senegalês, 28 graus, de modo a ficarmos em ritmo de Copa do Mundo, famílias e grupos afluíam ao Novodevichi para toques de nostalgia, lembranças pessoais, mas, sobretudo, para o contato com o vaivém político de um país que, em pouco mais de 100 anos, viveu transformações inigualáveis. De hoje para o ontem, porque talvez pareça mais didático, o póstumo “quem-é-quem” é enciclopédico.

Está lá Boris Ieltsin (1931-2007), o primeiro presidente russo depois do colapso soviético, cujo mausoléu deve ser o mais feio de todos – uma bandeira russa de pedra, estilizada e de mau gosto. Está lá Nikita Khrushchóv (1894-1971), secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964, no apogeu da Guerra Fria, e que ficaria conhecido pelos assustadores relatórios que descreveram os crimes de Josef Stalin.

Túmulo do Boris Ieltsin no cemitério de Novodevichi, em Moscou, Rússia Fabio Altman/VEJA.com

Muitas das placas do Novodevichi marcam o ano de 1937, o do “Grande Expurgo” stalinista, de perseguição brutal aos “inimigos do povo”. Khrushchóv foi parar no chão da necrópole porque lhe negaram a murada do Kremlin, onde repousam o próprio Stalin, o cosmonauta Yuri Gagárin e Lenin, cujo corpo embalsamado virou atração inescapável, a marca de um tempo que se foi. A segunda mulher de Stalin, Nadejda Alliluiéva, é homenageada em Novodevichi com um busto de granito branco, o semblante triste e a mão perto do rosto – na linguagem dos cemitérios é indício de que ela foi uma suicida. Nos anos 1970, o túmulo de Nadejda chegou a ser vandalizado. Hoje há flores.

O que dá o tom lúgubre ao Novidevichi, além do pio dos pardais e do vento permanente (com a interrupção dos alto-falantes dos guias de turismo), é a profusão de bustos e esculturas de romancistas, poetas, músicos e bailarinas. Há também cientistas, chefes militares e heróis da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a Segunda Guerra Mundial. O rol é inesgotável. Nikolai Gógol (1809-1852), movido do cemitério de Danilovski. Anton Tchekhov (1860-1904), que jazia nos terrenos do convento vizinho. Vladimir Maiakovski (1893-1930), transferido de outro campo-santo moscovita, o Donskoi. Quem mais? O cineasta Serguei Eisenstein (1898-1948), o diretor de teatro Constantin Stanilávski (1863-1938), a bailarina Galina Ulanova (1910-1998) e Valery Brumel (1942-2003), o campeão olímpico do salto em altura em 1964, talvez o mais espetacular esportista de sua modalidade.

Túmulo de Galina Ulanova, a bailarina, no cemitério de Novodevichi, em Moscou, Rússia Fabio Altman/VEJA.com

Muitos outros cemitérios levam carga emotiva semelhante – e possivelmente nenhum se iguale ao Père Lachaise de Paris –, mas o Novidevichi tem algo que nenhum tem. Ele é o retrato dos sucessivos rearranjos do país. Os mortos ali falam. Há significado histórico no fato de os restos de Khrushchóv viverem ali e não no Kremlin. Há evidente contexto político no vandalismo a qual foi submetido o busto de Alliluiéva. O cemitério nem sempre esteve aberto ao público, porque houve um tempo em que era preciso fingir-se de morto. Nos anos 1970, apenas em breves períodos recebeu os cidadãos de Moscou. Abria e fechava, mais fechava que abria. Só foi definitivamente escancarado com a perestroika de Mikhail Gorbachev, que fez até velhas lideranças comunistas se remexerem sete palmos abaixo da terra. Nas palavras de uma visitante russa: “É a nossa própria vida que estamos olhando aqui”. Não, os alemães de Joachim Löw tão cedo não terminarão no Novodevichi. Continuam vivos na Copa da Rússia.

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