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Itália: a mágoa de Balotelli em meio à guerra da imigração

O comportamento imprevisível do astro da seleção, que sofre por não ser visto como um italiano de verdade, ilustra a espinhosa questão da xenofobia no país

Por Giancarlo Lepiani |
O primeiro-ministro da Itália, Matteo Renzi, e o técnico da seleção, Cesare Prandelli, comem uma banana em apoio ao jogador brasileiro Daniel Alves, vítima de racismo na Espanha. No Instagram, Balotelli também aderiu à campanha

O primeiro-ministro da Itália, Matteo Renzi, e o técnico da seleção, Cesare Prandelli, comem uma banana em apoio ao jogador brasileiro Daniel Alves, vítima de racismo na Espanha. No Instagram, Balotelli também aderiu à campanha

Os episódios de violência motivadas por racismo e xenofobia não são incomuns na Itália – e muitos deles são atribuídos a seguidores da Liga Norte, facção de extrema direita que tem em Brescia, onde Balotelli passou a adolescência, um de seus principais redutos

Mamma mia, eu divido a Itália em duas!” A frase inusitada, postada no Twitter de Mario Balotelli durante uma noite de insônia no último fim de semana, é um diagnóstico duro, mas surpreendentemente lúcido. O principal jogador da segunda seleção mais vencedora da história das Copas do Mundo virá ao Brasil como herói para muitos e vilão para tantos outros, despertando paixão e ódio antes mesmo de tocar na bola – e, ainda que leve a Azzurra ao pentacampeonato, empatando com a seleção brasileira em número de títulos, o explosivo atacante de apenas 23 anos não voltará para casa em paz. Balotelli vive em permanente crise de identidade. Suas raízes estão na África, mas sua família é europeia. Apesar de ter vencido na vida – já é um dos atletas mais ricos da Itália -, o craque mercurial e imprevisível dá repetidos sinais da mais profunda mágoa com quase todos que estão ao redor. Conforme muitas pessoas que já tiveram contato com o astro, trata-se de uma amargura difícil de curar – aparentemente, Balotelli acha que os italianos só o toleram em troca de gols, e que, no fundo, jamais o aceitarão como um legítimo compatriota.

Filho de um casal de imigrantes de Gana, Balotelli nasceu em Palermo, na Sicília, em 12 de agosto de 1990, como Mario Barwuah. À procura de emprego, o pai operário levou a família para Bagnolo Mella, pequena cidade nos arredores de Bréscia, na Lombardia, dois anos depois. Dividiam um minúsculo apartamento com outra família africana. Mario, que nasceu com problemas no sistema intestinal e teve de ser submetido a uma cirurgia ainda em Palermo, era um garoto sorridente que já passava o dia todo agarrado a uma bola de futebol – mas a família admitia que ele não recebia os cuidados médicos de que precisava. Os pais foram ao serviço de assistência social da cidade, que sugeriram que o menino fosse entregue a uma família adotiva, ainda que provisoriamente. Mario foi acolhido por Francesco e Silvia Balotelli, donos de uma casa ampla em Concesio, uma cidade próspera a cerca de dez quilômetros de Bréscia. Inicialmente, o garoto passava a semana na casa da família Balotelli e voltava aos pais biológicos aos sábados e domingos. Com o tempo, passou a mostrar frieza e indiferença no contato com sua família africana; ao mesmo tempo, criava um vínculo cada vez mais forte com Francesco e Silvia.

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“Mario foi ficando cada vez mais distante”, conta o pai ganês, Thomas Barwuah. “Queríamos tê-lo de volta, mas ele foi ficando por lá.” Mario nunca foi adotado oficialmente pelo casal italiano, mas deixou claro que preferia trocar de família – tanto que passou a usar o sobrenome Balotelli. Na avaliação de sua mãe adotiva, não era difícil entender o motivo – afinal, o agora adolescente Mario parecia perceber que esse era o melhor caminho para ser aceito, principalmente numa região onde a discriminação contra os imigrantes pobres da África é tão forte. “Ele nasceu e cresceu na Itália, mas teve de passar pelas humilhações e provações a que são submetidos os estrangeiros daqui”, disse Silvia Balotelli. Em 2008, ao completar 18 anos, Mario ganhou a cidadania e os documentos italianos numa cerimônia na prefeitura de Concesio. Depois dos trâmites, ele afirmou: “Sou italiano, sinto-me italiano e vou jogar pela seleção italiana.” Os pais biológicos não só não foram convidados como nem sequer foram avisados. “Não sabíamos de nada, vimos na TV. Não sabia nem que ele tinha virado Balotelli. Achávamos que ele ainda usava o nosso sobrenome”, conta Thomas Barwuah.

A cerimônia na prefeitura só foi notícia, é claro, porque Mario Balotelli, a essa altura, já era visto como um dos jovens jogadores mais promissores de toda a Europa. Após iniciar a carreira num clube semiamador, o Lumezzane, aos 15 anos, ele foi reprovado num teste no Barcelona, mas acabou sendo contratado pela Inter de Milão em 2006. Estreou pelo time principal no ano seguinte, marcando duas vezes logo no primeiro jogo. O atacante forte, rápido e habilidoso colecionou gols, vitórias e incontáveis confusões tanto na Inter como em seus clubes seguintes, o Manchester City e o Milan, que defende hoje. Temperamental, já começa a dar dores de cabeça à equipe do ex-premiê Silvio Berlusconi – o tweet publicado na madrugada de sábado foi um comentário sobre a partida em que Balotelli teve atuação pífia, discutiu com o técnico Seedorf ao ser substituído e depois reclamou de um jornalista enquanto dava uma entrevista ao vivo. “Que jogo estranho”, escreveu depois, ao lado de um singelo sorrisinho.

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Mamma mia divido l Italia in 2! Però! Mentre quasi tutto l Estero è unito con me! What a strange game:-)

– Mario Balotelli (@FinallyMario) 26 abril 2014

Integração – As peripécias de Balotelli no último jogo alarmaram o técnico da seleção italiana, Cesare Prandelli – que, de acordo com a imprensa local, já começa a avaliar a possibilidade de barrar o atacante de sua equipe titular ou até mesmo de excluir o craque da lista de convocados. Prandelli, que tem a reputação de ser um treinador calmo, sensato e paciente, sempre disse que Balotelli merecia uma atenção especial – e que estava, portanto, disposto a tolerar algumas das trapalhadas do craque, desde que elas fossem inofensivas. “Ele precisa de muito amor”, disse o técnico certa vez. Numa passagem por São Paulo para acompanhar o sorteio dos grupos da Copa das Confederações, no fim de 2012, Prandelli revelou, durante conversa com jornalistas, sua preocupação com a integração dos filhos de imigrantes à equipe nacional. Temeroso com a interação nem sempre natural e harmoniosa entre eles e os demais atletas, por causa das diferenças de costumes e comportamentos, o técnico usou o termo “novos italianos” para classificar esses jogadores – além de Mario Balotelli, o atacante Stephan El Shaarawy, descendente de egípcios, também se enquadra nessa categoria.

Apesar de ter usado uma expressão que pode soar politicamente incorreta, Prandelli não demonstrou qualquer sinal de reprovação à entrada desses “novos italianos” na equipe nacional. Além de Balotelli e El Shaarawy, ele já chamou os brasileiros naturalizados Thiago Motta e Rômulo para participar de seu grupo. Para uma seleção que demorou bem mais que as outras para absorver os imigrantes e seus descendentes – equipes como Alemanha e França, com muitos jogadores de outras etnias e origens, já estão bem mais acostumadas à diversidade -, trata-se de uma novidade e tanto. Prandelli também chamou atenção dos jornalistas brasileiros ao fazer uma piada sobre a cor de Balotelli na véspera da partida entre Brasil e Itália, em Salvador. Com a delegação trancada nos quartos do hotel por causa do medo da violência em meio à onda de protestos de junho de 2013, Balotelli foi o único a sair. “Ele tem uma cor diferente dos outros, não é visto como italiano, não tem problema”, brincou. Não houve maldade nem mau gosto: Prandelli explicou depois que o próprio jogador fez a piada ao avisar que estava deixando o hotel – ele banca um projeto social de apoio a crianças carentes na capital baiana e queria visitar a sede.

Violência – Na segunda-feira, tanto Balotelli como Prandelli juntaram-se à campanha iniciada por Neymar nas redes sociais para condenar o racismo no futebol. O técnico, aliás, comeu sua banana acompanhado do premiê da Itália, Matteo Renzi. Entre os italianos, entretanto, o assunto é muito mais espinhoso do que faz parecer a foto de Prandelli e Renzi, com jeito meio pândego, degustando as bananas em solidariedade a Daniel Alves. O combate à imigração ilegal é um dos temas mais controversos e inflamados da vida política italiana – e a relação da população local com os africanos e asiáticos que formam comunidades cada vez mais numerosas nas grandes cidades do país é absolutamente tempestuosa. Os episódios de violência motivadas por racismo e xenofobia não são incomuns – e muitos deles são atribuídos a seguidores da Liga Norte, facção de extrema direita que tem na Brescia do Balotelli adolescente um de seus principais redutos.

A imigração em larga escala à Itália começou no fim dos anos 1980. Até 1990, os imigrantes correspondiam a apenas 1% da população. Duas décadas depois, eles já são cerca de 7,5% do total. De acordo com a ONG Human Rights Watch, as autoridades italianas subestimam o problema e são ineficazes no combate a ele. A economia claudicante só aumenta a pressão sob os imigrantes – os italianos desempregados giram suas baterias para a mão-de-obra barata vinda principalmente da África. Dentro desse contexto, Balotelli é um alvo fácil. Ele já foi vítima de provocações racistas e xenófobas tanto no sul (em Nápoles, teve uma crise de choro depois de ser substituído num jogo em que ouviu ofensas da torcida) como no norte (foi xingado de macaco na própria cidade de Milão). De acordo com Simon Martin, que pesquisa a história do esporte na Universidade Americana de Roma, sua situação lembra a dos primeiros atletas negros do futebol inglês, nos anos 1970. Com punições aos atos racistas e uma presença cada vez maior de estrangeiros e negros, hoje a liga inglesa é muito mais evoluída nesse aspecto. “Mas esse é um processo longo”, avisa Martin. Por enquanto, Balotelli, o italiano-ganês que promete ser uma das caras da Copa, terá de viver num país ainda dividido – não só em torno dele, mas também sobre como acolher e conviver com os “novos italianos”.

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