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Na seleção de Felipão, o treino mais importante é… no divã

Nem clima de ‘já ganhou’, nem pressão em excesso: psicólogas explicam por que o técnico confia tanto na especialista que o acompanha há duas décadas

Por Pollyane Lima e Silva, do Rio de Janeiro |
Regina Brandão (ao centro) e suas auxiliares com Felipão, na Granja Comary

Regina Brandão (ao centro) e suas auxiliares com Felipão, na Granja Comary

“Dez entre dez jogadores desejam disputar uma Copa. Mas, junto com esse sonho, vem uma carga pesada. E isso resulta em uma ansiedade extrema, que pode levar ao desequilíbrio”, diz a psicóloga Juliane Fechio

A seleção brasileira está concentrada em Teresópolis, Região Serrana do Rio de Janeiro, para o início de sua caminhada rumo ao hexa. Os treinos do início da semana foram leves: o mais importante nos primeiros dias foram os exames médicos e as avaliações físicas dos jogadores – em especial os que vêm de fim de temporada na Europa. Mas trabalhar apenas o corpo não basta. Luiz Felipe Scolari sabe bem que é preciso cuidar também da cabeça de seus atletas, muitos deles muito jovens e, em sua maioria, estreantes em Copa do Mundo (dos 23, somente seis já passaram pela experiência). Por isso, o técnico fez uma convocação extra para sua comissão técnica: a psicóloga Regina Brandão, com quem trabalha há mais de 20 anos. Sua função é fazer um diagnóstico da parte emocional dos jogadores, que têm pela frente não só o desafio de disputar o torneio mais importante de suas carreiras como ainda enfrentar a pressão de jogar em casa – com a “obrigação” de ganhar, portanto -, sob os olhares exigentes da torcida e esperançosos dos familiares. De quebra, ainda podem virar os alvos mais improváveis das manifestações contra o evento, como aconteceu na manhã da apresentação no Rio, quando o ônibus dos jogadores foi cercado por professores em greve.

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Felipão garante que o grupo está confiante e focado na vitória, mas quer combater qualquer tipo de “oba-oba”. Há, ainda, um fantasma para exorcizar: as memórias do Maracanazo. Passados 64 anos, a derrota do Brasil para o Uruguai no mesmo estádio que receberá a final deste ano é assunto proibido na concentração da seleção, mas sua lembrança deverá rondar a equipe no decorrer da campanha. “Regina vai trabalhar o aspecto emocional dos atletas para que eles não façam nenhuma ligação com o que aconteceu em 1950. Esta Copa não tem nenhuma relação com aquela”, avisou na quarta o médico-chefe da seleção, José Luiz Runco. A psicóloga, que já tem entrosamento de sobra com Felipão, fará dois tipos de trabalho: conversará com o grupo todo e também com cada atleta individualmente. Regina costuma elaborar um perfil de cada jogador e os apresenta a Felipão. “Não passo essas informações a mais ninguém”, assegura o treinador, que diz ainda guardar as avaliações de todos os times em que a psicóloga fez esse trabalho para ele. Regina Brandão realizou a mesma função em 2002, quando preparou Ronaldo, Rivaldo, Cafu e companhia para a conquista do penta. “Naquela época, tínhamos atletas com muito mais história em Copas, mas a experiência que esses jogadores de agora estão tendo nas principais competições europeias me faz acreditar que eles não sentirão tanta diferença”, comentou ele, ainda no dia da convocação.

​Foco – Jovens ou experientes, todos os integrantes do grupo de Felipão têm um mesmo desafio: deixar as inseguranças, o excesso de confiança e os traumas fora de campo. Profissionais ouvidas pelo site de VEJA alertam: o emocional pode ser decisivo para vencer ou perder um jogo. Concentração é tudo, resume Suzy Fleury, uma das maiores especialistas do país em psicologia esportiva. “O futebol parece simples, mas há muitas distrações inerentes a uma partida, desde uma decisão do árbitro com a qual não se concorda até um gol do adversário. E se o jogador perde o foco, ele começa a errar passes que costuma executar com facilidade. O atleta fica ainda mais nervoso e acaba se perdndoe”, explica Suzy, lembrando que essa foi uma das razões que tirou o Brasil da Copa de 2010, nas quartas de final contra a Holanda. Depois de dominar o rival no primeiro tempo, a equipe de Dunga levou o empate e acusou o golpe. “O time ficou tão desestabilizado que não conseguiu voltar para o jogo. É assim que um adversário até inferior taticamente consegue crescer, e é quando as grandes zebras acontecem.” É aí que até os grandes craques podem falhar feio. Um jogador ansioso demais pode exagerar na força do chute. Aquele que está muito apreensivo dá um passe mais curto do que deveria. Sinais como esses indicam que as coisas desandaram – e que é hora de a psicologia entrar em campo.

“Dez entre dez jogadores desejam disputar uma Copa do Mundo. Mas, junto com esse sonho, vem toda uma carga bastante pesada, pela vontade de corresponder a todas as expectativas. E isso resulta em uma ansiedade extrema, que pode levar ao desequilíbrio”, comenta Juliane Fechio, coordenadora do departamento de Psicologia do Santos, o clube que revelou o principal nome da seleção de Felipão, Neymar. As técnicas ensinadas aos atletas para manter o controle incluem relaxamento e respiração – já que motivação eles têm de sobra. “A pressão mexe com a fisiologia. O cérebro é o primeiro a sentir. A visão de jogo fica prejudicada, e os músculos, contraídos. A respiração se torna rápida e ofegante, o suor aumenta, e isso acelera a desidratação e o desgaste físico. É uma reação em cadeia”, diz a especialista, acrescentando que nem sempre é possível prever de que maneira cada um será afetado, e como vai lidar com a situação. Em alguns casos, isso termina da pior forma possível, com uma expulsão – como na última eliminação do Brasil na Copa, quando Felipe Melo (um atleta que sempre mostrou muita instabilidade) perdeu a cabeça, levou o cartão vermelho e deixou a Holanda ainda mais perto da vitória. É fundamental, portanto, que o psicólogo participe do dia-a-dia do grupo, para criar uma relação de confiança com os jogadores e entender seu comportamento, suas dificuldades e suas reações. É a convivência que a equipe que auxilia Felipão na parte psicológica terá com os convocados durante todo o torneio.

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Juliane foi aluna de Regina Brandão, começou a carreira na base do clube paulista e depois passou ao profissional, ainda na época em que Neymar brilhava pela equipe. Mas ela não trabalhou diretamente com o craque, que “tinha uma vida muito corrida”. O que talvez explique uma declaração dada pelo astro no início do mês: “A gente não está doido, não precisa de psicóloga”. Como tem, de fato, um perfil mais confiante e seguro, e já mostrou que não foge da responsabilidade na seleção, Neymar pode até achar que o trabalho de Regina Brandão e de outras profissionais da área é dispensável. A resistência de alguns atletas é comum, admitem as especialistas. Scolari garante que não força a participação de ninguém, mas conta que todos acabam aceitando. “Jogador é desconfiado, e acha que esse tratamento é sinal de fraqueza. Na verdade, é uma parte da preparação, assim como a física e a tática”, compara Juliane. O início do trabalho costuma ser delicado, avalia Suzy – e ela lembra, inclusive, que o próprio camisa 10 pode merecer uma atenção extra da equipe de Felipão. “Ele precisa ter sempre em mente que é tão importante quanto qualquer um. Se a gente tivesse onze atletas iguais a ele em campo, ganharíamos o jogo? Claro que não. Por mais craque que seja, não conseguiria jogar de goleiro, de zagueiro, de volante… O que interessa é o que cada um faz em nome do coletivo.” Também é preciso evitar uma relação de dependência dos demais, como ocorreu na final de 1998 com Ronaldo, que entrou em campo depois de uma convulsão, abrindo caminho para o atropelo da França, que venceu por 3 a 0. “A equipe toda se abalou e não deu nem 50% do que era capaz. A falta de confiança é tão prejudicial quanto o excesso. E todos devem ter consciência de que só se ganha uma partida depois do apito final”, enfatiza Suzy.

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